sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Caminhos e descaminhos do PIB - uma breve reflexão

Sempre que o IBGE publica dados sobre o produto interno bruto (PIB) do Brasil a imprensa apressas-se a divulgar seus resultados - normalmente com manchetes negativas: Folha, Estado de SP, Globo, Zero Hora, Correio Brasiliense, Estado de Minas. De todos os links, apenas o do Estado de Minas tem manchete mais "neutra".  O mais significativo foi o pequeno crescimento trimestral de 0,5% ante o trimestre anterior puxado pelos gastos das famílias.
O PIB é uma medida criada na década de 30 por Samuel Kusnets, sendo a soma de todas as riquezas nacionais por todos os setores mensuradas em valores monetários e em determinado período (ano, semestre, trimestre, etc.). Observe, por favor,  o gráfico abaixo, que representa o crescimento do PIB (US$ e não ajustado pela inflação) dos BRICS entre 1960  e 2011:
  
 Não estamos no inferno, não é? Até porque, estranho, somente não expandimos mais que a China.

Agora, comparemos  o Brasil com alguns vizinhos na "latinoamerica", também em US$ e não deflacionado:


 Não é curioso? Não tão fracos assim não é?


O clássico dos neoclássicos, Alfred Marshall, escreveu que era muito importante afastar-se das árvores e ver a floresta. Até um pouco treinado olho para dados observa a diferença e o momento de "descolamento"do Brasil - 2002-2005. A variação para cima na metade dos anos de 1990 no Brasil representa o crescimento com vôo rasante proporcionado pela estabilidade do "plano real", depois retornando a curva para baixo até 2002.
Mas, sejamos justos. Vamos observar o dado segundo a renda nacional medida em "paridade poder de compra" (PPC), o que ajusta as diferenças de preços entre os países:


 Mudou muito?

Não, permanece o  Brasil em posicão relevante e de liderança isolada - quase 4 Argentinas e 9 Chiles, se me permitem.

Finamente, vamos ver um dado "negativo" para o Brasil - a renda bruta em termos per capita:

 Poderia ser melhor não?


Vamos escolher três países para comparar. Entre 2000 e 2011 o Brasil teve um crescimento populacional de 12,6%, o PIB per capita cresceu 68,6%; no Chile, a população ampliou-se 11,6% e o PIB per capita 81,3%. Que isso quer dizer? Per capita opera em relação a população e o Chile vem mantendo este crescimento vigoroso. O Brasil teve um crescimento populacional não tão distinto, mas o PIB per capita quase 13% menor. O caso do México é mais diferencial: população ampliando-se em 15% enquanto o PIB per capita avançou 80,4%, quase o mesmo do Chile. Para ilustrar a diferença de indicadores temporais, se tomarmos uma serie mais curta - começando em 2004 e chegando a 2011 - o Chile permanece destacado com crescimento per capita de outros 81% (população = +7,2%), o Brasil passa ao segundo (47%, população= +6,9%) e o Mexico cresce menos per capita: 35% (população aumentando 9,2%). Claro deve ficar que não estamos discutindo a economia de cada país, mas apenas renda per capita e produto. O Chile permanece forte e o México perdeu terreno em 8 anos. No gráfico como um todo, Brasil e Chile apresentaram curvas mais "generosas", a Venezuela flutuou muito mais e a Argentina sofreu o desmonte de sua crise entre 1999 e 2002, para depois recuperar-se com força. O efeito "fundo do poço"de seu PIB(em 2002) promoveu um vigoroso crescimento posterior. Para se ter uma ideia do estrago na Argentina, o PIB de 2008 era apenas ligeiramente maior que o de 2000.  Chile vai bem? Sim, dentro dos limites de sua economia bem adaptada à demanda internacional. O Brasil vai ao desastre? Nem de perto, nem vamos tão mal assim. O que poderia acontecer era um crescimento mais vigoroso. O Mexico inspira muito mais cuidados, inclusive devido a sua quase total dependência do mercado norte -americano e à longevidade da crise nos EUA.

Mas os dados são prisioneiros dos conceitos. PPC também significa considerar as diferenças de custo de vida entre os países, aproximando-os para efeito comparativo. O mesmo vale para o PIB. Medir a renda per capita, por sua vez, requer sempre a lembrança de que esta é proporcional a população. Como na maioria dos dados, séries temporais importam mais que dados isolados, sendo o curto prazo um dado enganoso. Dizer que o PIB brasileiro cresce "apenas" 0,6% em um trimestre e compará-lo com outro países é enganoso e pouco importante pelo menos por três motivos: o primeiro é a própria dinâmica interna de cada um, outra são as estupendas diferenças entre as economias nacionais e a terceira é o efeito de curto prazo, normalmente sazonal e menos significativo. É sempre preciso lembrar que, se observarmos Brasil e Chile em termos de complexidade econômica, o Chile é formidavelmente menos diversificado que o Brasil e nosso déficit histórico de concentração da renda é motivo suficiente para observarmos ambos com mais cuidado. 

O PIB é muito criticado porque não diferencia entre o que é produtivo ou devastador - uma guerra, os rendimentos não monetários, não reflete o desemprego ou a desigualdade, não diferencia o investimento de bem estar dos conflitos armados. Ele é filho do entre-guerras e do forte crescimento do pós-guerra, a medida de sua notoriedade também vem destes momentos. Ainda que criticado, medidas como "desenvolvimento humano" não se impõem como mensuração para contabilidade nacional. 

Por que toda esta narrativa? Porque a imprensa comporta-se sobre o PIB exatamente como comporta-se com a economia em geral: toma o aparente pelo certo, o sazonal pelo total e o "negativo" antes que o ponderado. O crescimento atual foi tímido? Com certeza. Precisamos de mais. Mas seria prudente observar outros indicadores combinados - juros, câmbio, inflação, desemprego, taxa de investimento e formação de capital fixo - para maior ponderação. Exercitar a paciência para efeitos futuros também seria de bom tom. E já que existem países sendo comparados, fazer o mesmo em relação a eles. Mas isto daria muito trabalho aos jornalistas "econômicos", que preferem o molho do caos ao tempero da inteligência.

domingo, 19 de agosto de 2012

Cultura ilustrada, valores universais e um mundo estreito - uma descida ao inferno



Alguns autores são senhores da cultura e lordes da escrita, em cada época controlam o sentimento do mundo à sua volta e tomam o pulso do universo político-cultural. A lista é extensa e (como tudo que importa) não se curva às ideologias ou ao mero juízo desinformado. Trata-se de uma estirpe de dramaturgos, romancistas, filósofos - de Shakespeare a Marlowe, de Dante a Boccaccio, de Voltaire a Montaigne e Carlyle, de Ésquilo a Sófocles, de Camões a Machado, de Dickens a Poe, de Goethe a Musil e Mann.  Não importa o período, antes vale a prosa ou o verso. Sua plena beleza precisa ser captada em sua língua nacional, o que somente aumenta a responsabilidade dos tradutores que, ao recontarem a história, devem conseguir manter a senhoria da cultura em boa forma.  
Não sei o que vem sendo feito nos bancos de aula com a literatura; a julgar pelo que as Universidades recebem é muito pouco.  O mesmo tem que ser dito sobre a história, uma forma de narrativa obrigatória a qualquer intelectual e base da formação de identidade no tempo para compreender a comum herança da  humanidade e as particularidade nacionais.  A literatura é uma base importantíssima para a escrita, mas seu cultivo parece vir decrescendo; o gosto pela história parece seguir o mesmo caminho. E nem estou contando com uma noção espacial bem definida: onde as nações se localizam, sob  que céu se organizam, como se caracterizam.
No passado nem tão remoto, o conceito de humanismo não havia desaparecido em parte das elites. Muitas profissões liberais, como médicos e advogados, cultivavam bibliotecas; professores de áreas distintas operavam a capacidade de compreender história. Conhecia-se a distribuição espacial do mundo e discorria-se com alguma capacidade sobre temas da ciência e da cultura geral. Mas, como típico das elites brasileiras, isto também era modelo para segmentação social e reforço da estratificação; o caráter diferenciador em relação à "malta" (termo usado no início da República) e aos pobres desprovidos de cultura. Em outras palavras, apropriava-se da herança comum da humanidade como sua, negando ao outro seu papel de agente.
A redemocratização brasileira produziu um outro fenômeno. Neste campo, resvalamos para a outra ponta. As disciplinas clássicas foram " remontadas" - do específico para o geral, da conjuntura para a estrutura, do "erudito" para o "popular". Em nome da valorização do local, da etnia, da absoluta diferença, vigoraria a marca da distinção. Isto poderia funcionar? Sim, desde que  aquilo que fosse reconhecido como universal, herança comum, cultura no sentido da compreensão dos grandes, recebesse o status que merece. Não foi que aconteceu.
Este debate era mais vivo nos anos de 1980. Um livro de Sergio Paulo Rouanet -  "Razões do Iluminismo"  (Cia. das Letras, 1984) -é um bom exemplo disso. Em um capítulo intitulado "Verde-Amarela é a Cor do Nosso Irracionalismo", depois de criticar uma cultura onde se valorizaria em excesso a "broa de milho" (uma crítica ao então ministro da Cultura Aloisio Pimenta que falava nesse termo para realçar o "popular"), Rouanet faz uma bela defesa do iluminismo, da racionalidade informada e das criações culturais cuja expressão do belo ultrapassam classes e fronteiras, como a própria literatura, o ballet, a pictografia e as artes em geral. Ensinar e debater o universal não poderia ser substituído pela reconstrução de um saber popular que superasse uma cultura que ultrapassava fronteiras de grupo. 
Os defensores da postura de valorização do "popular" existem até hoje e estão em muitas posições. Afirmam que, ao defender o conhecimento do "povo", defendem uma identidade "massacrada", "obscurecida", "dominada". Que não pretendem abandonar outras expressões, mas este "popular" tem a mesma dimensão que a "arte das elites". Uma bobagem fruto de uma leitura canhestra do popular e das elites, daqueles adoradores do enquadramento; uma visão torta da classe, confundida com o popular.
Wolfgang Amadeus Mozart, por exemplo. Onde ele está? Em determinado momento a ópera não era diversão das elites, ela se tornou de elite por uma construção social específica. Mozart a escrevia em alemão, não em italiano que era a língua escolhida pelas elites para a ópera; ele a fazia com temas cotidianos, não em uma corte afastada do mundo. O livro de Elias "Mozart - A sociologia de um gênio" (Jorge Zahar) ajuda a compreender isso à sua moda. 
A grande pergunta é como o termo "cultura popular", expressão que já na partida hierarquiza-se em relação ao mundo, pode chegar a se opor tão fortemente à "alta cultura".? Esta última também se hierarquiza, mas do outro lado. Esta passa a ser a cultura das elites, negada dia a dia aos mais pobres, como se deles também não fosse, como se eles não participassem de sua história. Esta é a grande armadilha que parte da esquerda aceitou: defender o local, regional, popular contra a invasão da literatura, da pintura, da dança, da música como de "elite" e como se ela realmente o fosse. Os "progressistas" abandonaram a dialética e a substituíram pela lógica aristotélica tradicional: o local é forte e importante, quem faz cultura local é importante, logo cultura local é o mais forte. Mas onde o local se encontra com o universal? Aliás, como Mozart, o que foram Shakespeare, Balzac ou Machado? Cultura das elites? Só para quem viu os livros apenas empoeirando em alguma biblioteca. Quem os leu sabe a que me refiro. Aliás, o insuspeito Marx, o autor de muitos livros mais citados que lidos, escreveu algumas (poucas) paginas sobre isso na "Contribuição Para a Crítica da Economia Política" quando refere-se a arte e suas conexões passado-presente.
Suspeito que estamos diante de uma crescente redução do espaço da cultura. Em nome do particular, perde-se o universal; em nome do local, perde-se o global e em nome de relações no espaço público amplia-se de forma geométrica o espaço privado e seus interesses. Uma formação cada vez mais afastada de valores universais reforça o individualismo. A raiz republicana do universal, o espaço coletivo onde se constrói a unidade da nação e do sentimento de pertencimento ao mundo do humano, a derradeira marca iluminista e humanista,  é substituída por estranhos pertencimentos localizados na "comunidade". As consequências disso vão do fundamentalismo religioso aos guetos intelectuais. Se a verdade revelada encontra-se em um livro, porque me preocupar com os outros? Se a cultura a minha volta é tão forte e podemos dispensar a formação do legado cultural universalista, por que me preocupar com este último? E temos a praga do relativismo multiculturalista, igualizando tudo de forma acrítica.
Então, o último ato. O encaminhamento para o silêncio do fundo do palco, a rota para a amnésia derivada do abandono do passado. Ao contrário do que imaginam os incautos, Margareth Thatcher venceu poucas batalhas com sua cruzada liberal, mas duas são decisivas: a derrota dos sindicatos na Grã Bretanha e a guerra de opinião em nome do individualismo. Este ultraindividualismo penetrou na sociedade com todo vigor nos anos 90, transformando trajetórias individuais em " únicas" - "minha carreira", "meus sonhos", " minha poesia"- a história de cada um tem validade e todos falam de si. Como escrevi em outro post, olinks com o mundo compartilhado estão mudando de local - para a internet e solidariedades "locais" - desfazendo-se dos laços de classe e introduzindo apenas os laços do extemporâneo - de movimentos anti aumento de passagem de ônibus até muitos occupy mundo afora.  Hoje há uma geração que tem pressa, que perde a experiência em nome apenas de si. A formação cultural ganhou ares de "qualquer coisa" porque existe uma cultura ilustrada que deslocou-se ao fundo do palco. Quando a formação de capital cultural deslocou-se para o "meu conhecer", para "minha comunidade", compartilhar o humano foi interditado pelo que há de forte no mundo "local" que reage ao global. 
Paradoxalmente este cenário é de um mundo que optou por comunicação instantânea, velocidade de informação e deslocamento para o espaço global. Uma simples passeio pela internet mostra como cada um fala de si em suas páginas, seus amigos e suas citações de auto-ajuda. Praga contemporânea da informação, auto-ajuda é a combinação de religiosidade patética, estupidez filosófica e capacidade para o vulgar, mixadas para produzir frases e títulos. A apropriação medíocre de Sun Tzu pelos gênios da administração, das receitas de personagens deploráveis como Lee Iacoca, Jack Wash ou coisa pior, passando por "Jesus, o maior psicólogo que já existiu", o insuportável "quem mexeu no meu queijo?" e todo o lixo sobre bruxas e magos recentemente renascidos convive com a insuportável leveza necessária para compreender como as comunidades isoladas são lindas e tem tanto a nos ensinar, como as curandeiras tem sabedoria popular e como devemos olhar tudo como expressão sublime. Ficou mais fácil admirar o comum. Alguns movimentos recentes de cultura popular resvalam com rapidez para o kitsch, na expressão de Moles.
Enquanto valores " locais" e particulares ganham espaço por toda parte, em uma defesa da "democracia cultural", a herança de quem melhor captou e capta o sentimento do mundo vai sendo retirada para um saber secundário, criticado como de "elite". E com isso, esta defesa torna-se conservadora, mas é também muito mais reacionária. Lembro aos incautos que há uma diferença importante entre conservadores e reacionários no pensamento político: o primeiro prefere, na prosa de Michael Oakeshot, o certo ao errado, o certo ao duvidoso, a preferência pelo conhecido. O reacionário é algo mais terrível, da reação a Revolução Francesa: reagir e voltar ao passado. Muitos homens e mulheres de esquerda comportam-se como seguidores de de Maistre: preferem voltar para a identidade conhecida, valorizar a estreiteza comunitária, impedir o conhecimento da cultura "burguesa". Também não se diferenciam muito do stalinismo. Peço desculpas a quem prefere locupletar-se com banalidades religiosas de qualquer natureza,auto-ajuda ou escritores "locais" e suas comunidades, mas ainda prefiro Shakespeare, Marlowe, Dante, Boccaccio, Voltaire, Montaigne, Carlyle, Ésquilo, Sófocles, Camões, Machado, Dickens, Poe, Goethe, Musil, Mann e tantos outros como referências. A democracia cultural deveria ser o legado universal e as referências universais, não os estreitos limites da vida miserável e do elogio da pobreza. 
Conhecer o entorno, as comunidades, expressões particulares, tudo isto é absolutamente relevante. Mas como isto se conecta com o mundo? Como isso dialoga com a cultura ilustrada universalista? Esta é a chave, e formuladores de políticas culturais e educacionais deveriam pensar nelas. 
Mas isso supõe que esses formuladores também detenham esta visão e a capacidade de interpretação proporcionada por nossa herança universal. Pode ser uma cruzada difícil ...

P.S.: Como nota adicional e expressão do "eu" sublime, vivemos em um país onde uma diminuta parte da elite (?) elege colunista de jornal como membro de academia de letras, mesmo que escreva  textos onde dois terços são menções a terceiros, sem nenhuma originalidade ou o mais remoto valor literário. Pobre fantasma de Machado, em tão má companhia ... 

domingo, 12 de agosto de 2012

Sobre lembrança e esquecimento: o hino soviético, Lênin e Londres 2012

Para Vladimir Lenin,  mesmo desconfiando que ele odiaria, 

Para amigos dos anos 80 e para alguns mais novos.


Mas quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fieis, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo como almas, lembrando, aguardando, esperando sobre as ruinas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação
Marcel Proust - No Caminho de Swan (p.51, Editora Globo)


Hoje pela manhã foi a final olímpica de vôlei entre Rússia e Brasil, com uma memorável vitória russa por 3x2 sobre o forte time brasileiro. Terminado o jogo, na premiação, aumentei o volume da TV e ouvi algo que tinha esquecido que ainda existia: o hino da Rússia permanece sendo o da antiga União Soviética, que por sua vez é o eco da antiga Internacional. Não sei por que, depois de tantos anos de mudança e reconstrução, de muro caído, parlamentos bombardeados, estátuas derrubadas, de presidente trôpego e ex agente da KGB, parece que somente dois elementos sobraram: a múmia na Praça Vermelha e, para o canto esquecido da minha memória, o hino. 
Na Olimpíada de Barcelona (1992) ocorreu a primeira competição sem a velha URSS. Na ocasião um ginasta de origem bielorussa competiu pela ficção territorial chamada Comunidade de Estados Independentes: seu nome é Vitaly Scherbo. Em uma de suas tétricas coberturas televisivas, a Rede Globo escalou o "grande" poeta contemporâneo Pedro Bial para uma "crônica", onde este senhor declamava tendo por imagem de fundo  a cena com Scherbo nas argolas na posição de Cristo e depois chorando ao ouvir o hino, o mesmo do qual comecei  falando. Na interpretação do "notável" jornalista, com a imagem congelada na posição de Cristo, ele definia: o atleta estava prestando homenagem, com seu choro, a um deus morto. Qual? Claro: era o comunismo.
Hoje me recordei desta cena depois de sentir uma pontada de emoção ao ouvir o hino. Antes que algum desavisado critique, não tenho saudades da velha Rússia Soviética, do modus operandi stalinista, dos pogrons, campos ou algo parecido. É que às vezes os entulhos da história permanecem. Entre a década de 80 e 90 houve uma larga oferta de varredura para o esquecimento do que foi o movimento socialista, onde ele atuou, quem ele ajudou a liberar, que sonhos cultivou. Muitos socialistas e comunistas estiveram à frente de movimentos de libertação nacional no antigo "terceiro mundo", na África e na América de língua espanhola. Em experiências frustradas no Chile de Allende, no fim da ditadura de Baby Doc Duvalier ou em Cuba. Há um poema de Neruda apontando que os comunistas, que mais combateram tantas ditaduras, foram jogados depois no fundo do palco. Os herdeiros da tradição socialista, mas não comunista, afiançaram a democracia europeia depois da guerra (na Alemanha, França, Itália) e foi muito importante sua ação em Portugal (1974) quando os cravos substituíram as baionetas em uma das mais belas transições que se tem notícia. Estes últimos não eram leninistas, o líder soviético com sua retórica inflamada os denominaria antes de "chauvinistas".  Até isso tem história - a grande querela de Lênin com Kautsky e o SPD.
A Rússia bolchevique pretendia ser uma espécie de refúgio para a utopia comunista. Mas ela fracassou redondamente, seja pelo insucesso econômico e a incapacidade em produzir sinalizadores claros de preços, pela institucionalização precária das organizações, pelo estado que reunia em si todos os poderes e pela incapacidade em compreender mutações que foram do estado de bem-estar aos ventos liberais dos anos 80. Lênin escreveu ao fim de "O Estado e a Revolução" que era muito mais prazeiroso fazer a revolução que escrever sobre ela. A experiência histórica do comunismo soviético mostrou que era muito mais terrível dirigir o atraso que escrever sobre ele.
Entretanto, a defesa do esquecimento é um programa terrível. Afinal, como esquecer a heroica batalha de Stalingrado e o papel que o exercito vermelho desempenhou a despeito de quem o liderava? Os sacrifícios do país invadido à época ainda da revolução pelas potências ocidentais e os esforços de industrialização? Quantos conhecem a epopeia de Trotsky no exílio, sua perseguição implacável pelo regime stalinista, a perseguição de um brilhante intelectual do "desenvolvimento desigual e combinado", base da internacionalização e depois das justificativas para revoluções fora do centro capitalista?
Talvez a minha geração, que estava na Universidade nos anos 80, tenha sido a última que conhecia a formidável biografia de Trotsky por Isaac Deutscher, o "programa de transição" de Trotsky, discutia Lênin e Marx/Engels em suas obras completas publicadas pela Alfa-Ômega, citava as " Teses de Abril", juntava dos sebos textos do Edtorial Escorpião de Portugal ou editoras pequenas gerando edições despedaçadas dos "Manuscritos de 44", com fragmentos sobre a alienação do trabalho. Alguns com mais sorte escapavam do dogmatismo e viam Gramsci como uma luz diferente no túnel e tentavam, sinceramente, transformar o excepcional intelectual multifacetado que foi Walter Benjamin em marxista. Aqui lembro tudo de forma esparsa. Houve uma geração antes, na década de 1970 no Brasil, para quem o grande nome foi Lukács e a crítica da cultura era revelada por Adorno, Horkheimer ou  Marcuse. A esquerda dos 80, da "abertura política" brasileira, compartilharam o desejo de entender os ventos de mudança que sopravam no país com leituras clássicas e marxistas um tanto "abertos", caso do americano Marshall Berman e "tudo que é sólido desmancha no ar", livro surpreendente muito lido aqui e que pouco interesse despertou em quase toda parte. Os anos de 1990 marcaram o entusiasmo por autores como Habermas, os "marxistas analíticos" de diferentes matizes (pois Roemer e Elster são diferentes de Olie Wright e Przeworski) e os debates sobre a vitalidade do marxismo ou sua defenestração ao reino da "teoria do conhecimento". O final dos 80 e início dos 90 são a era da "crise de paradigmas nas ciência sociais", dos textos de Alexander e da divulgação forte de Thomas Kuhn. 
O fracasso do comunismo histórico é o fracasso de Lenin? Do leninismo conforme ele se desdobrou pelo mundo sim, do stalinismo com absoluta certeza. Com eles também se foi Trotsky. Com perdão do trocadilho (se pensarmos em " Que Fazer?"), o que ficou? A utopia do comunismo deve a Lenin tanto o sucesso como o fracasso. O sucesso da revolução de 25 de outubro, uma revolução acompanhado pelas multidões com a promessa generosa de "as terras para os camponeses, as fábricas para os operários, paz e prosperidade para os povos". E de fracasso stalinista pelos campos de prisioneiros, pelos pogrons, pela ineficácia econômica. Não foi o "início do fim das classes", como escreveu Marx em seu programa pós revolucionário, mas a construção de uma distopia. Entretanto, não é possível diminuir a presença histórica de Lenin.
Foi muito triste identificar um legado distópico em um programa de esperança. Grande parte daqueles que defendem hoje a herança de Lenin apresentam uma irracionalidade da política como fim em si mesma, reinterpretando a mensagem de "Que Fazer" em um partido ou organização com uma visão instrumental da democracia e deslocada da realidade, convertendo a revolução no mesmo fenômeno da miragem do deserto: quanto mais eles se aproximam do ponto, mais ela se desfaz. Muito poucos, opacos, tornaram-se irrelevantes no cenário político de todas as nações, democráticas ou não, limitando-se a gritar a plenos pulmões e tornando-se roufenhos com o passar do tempo, como se o Palácio do Planalto sequer tivesse a grandeza do Palácio de Inverno, exagerando a ironia.
O pior é que este comportamento não serve no combate ao esquecimento. O mundo contemporâneo cultiva uma amnésia societal que atinge a geração atual. Tudo se dá, após a hecatombe liberal entre os anos 80 e o início de 2000, como uma invenção atual: profissionais e jovens comportando-se como se o mundo estivesse começando com suas vidas. O ultraindividualismo, o grande legado de Thatcher, imiscuiu-se para a esquerda, inclusive naquilo que muitos creem ser projetos coletivos. Isto vai da "minha carreira" ao "meu sucesso", de minha (e de mais ninguém) trajetória e da história de cada um. Os links com o mundo compartilhado estão mudando de local - para a internet e solidariedades "locais" - desfazendo-se dos laços de classe e introduzindo apenas os laços do extemporâneo - de movimentos anti aumento de passagem de ônibus até muitos occupy mundo afora. Até greves tornaram-se expressões do "eu" totalitário, da "minha vida", como se o jogo tivesse um round e não múltiplas rodadas. Hoje há uma geração que tem pressa, que perde a experiência em nome apenas de si. 
Talvez seja preciso recuperar Lenin, mas não para uma caricatura dele mesmo. Contra o ultraindividualismo, o "espontaneísmo" das praças e a "doença infantil do esquerdismo", Lênin faz falta. Em outro contexto, o insuspeito Norberto Bobbio escreveu um texto no livro "Depois da Queda" (Paz e terra, 1992, p. 20) algo que aponta para uma questão central:
A democracia, devemos admitir, superou o desafio do comunismo histórico. Mas, de que meios e ideais dispõe para enfrentar os mesmo problemas que deram origem ao desafio comunista? ... Como disse o poeta: "Agora que já não temos bárbaros, que será de nós sem bárbaros?"  
 Em algum tempo pode ser que ninguém tenha nenhum rasgo de emoção ao ouvir o hino da velha União Soviética e seus ecos da Internacional. Ou não saiba exatamente o que foi aquilo e que história teve. Será um dia triste.

P.S.: A Olimpíada de Londres terminou e, na festa de encerramento, lá estava o "fantasma" de Freddie Mercury no telão regendo a multidão, bem como os vastos cabelos brancos de Brian May (como o tempo passou desde o Rock In Rio 85 que vi) dedilhando uma das melhores guitarras de todos os tempos. Lenin detestaria, mas como ainda é bom ouvir o som pop-rock do "Queen". Sorry, herdeiros do leninismo de caserna, melhorem o humor.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

A comédia humana eleitoral

Estamos iniciando a subida da montanha, movimento que estará concluído em 07 de outubro quando serão escolhidos o executivo e e o legislativo nos municípios brasileiros. Como se sabe, é um dos mais vastos pleitos do mundo, com um eleitorado gigantesco espalhado pelo país, expressiva liberdade de organização partidária, de manifestação de opinião e direito de voto. Este último começa em 16 anos e permite o voto dos analfabetos, sendo obrigatório a partir de 18 anos.  E cada pleito lança em todos os lares aquilo que alguns acham ser uma grande inovação da democracia brasileira, ainda que criada pelos governos militares: o horário eleitoral dito gratuito. Registre-se que a imprensa, que tem a síndrome de sentir-se ameaçada em sua liberdade quando fala-se ou escreve-se qualquer coisa contra a excessiva concentração de seu poder, publica o que lhe apetece, divulga as pesquisas que quer - e quando quer - e tem editoriais críticos, ainda que não se tenha notícia de veículos de circulação nacional (com exceção da Carta Capital) que manifeste-se a favor de um candidato.Outra "formidável" inovação é a presença de uma justiça eleitoral que interfere, determina, multa, eventualmente prende, sob a justificativa de fiscalizar e aplicar a lei eleitoral, ainda, e mais uma vez, outra inovação criteriosa, aliás invariavelmente modificada quase sempre. Finalmente, não se pode acusar todo o processo por ausência de discussão: em breve teremos espetáculo e participação: quando o tal horário de TV e rádio se iniciar, quando estivermos próximos de 30 dias para o pleito, as esquinas, bares, festas, aulas, na casa e na rua somente se falará disso. Imagens serão construídas e desconstruídas, tramas e dramas serão narrados, risos serão atirados contra os absurdos, o dilema entre o nacional e o local será digladiado e cada candidato ao executivo virá com  a peça de ficção mais cara das eleições, o tal "programa de governo". Os candidatos ao legislativo debatem-se na virulenta dispersão de votos e são espremidos pelo voto proporcional, tendendo a concentrar-se em confusas intenções, a maioria inconstitucionais e sem vínculo com a vereança, acreditando em duendes e no inevitável juízo de que, tendo dez parentes, cada um poderá trazer mais dez votos, que por sua vez trará outros cinco e assim por diante, contando também com seu esforço pessoal. Assim ele poderá apertar cerca de 10.000 mil mãos direitas em dois meses (e alguns dias) e assim produzir 2.000 votos, uma eficácia estupenda da ordem de 20%, conhecendo 154 pessoas a cada dia. Não é chiste ou folclore, pois todos aqueles que frequentaram alguma campanha, ou acompanharam um candidato a vereador, sabem que esta aritmética, ou "progressão", é muito mais trivial do que se pensa. Seguindo a lógica da teoria do mercado eleitoral, sendo todos racionais e buscando a mesma coisa, claro que todos desejarão apertar as tais dez mil mãos, todos tem parentes e, em havendo, por exemplo, 411 candidatos em uma cidade como Juiz de Fora (MG), cada candidato, apertando 10.000 mãos, teríamos 4.100.000 mãos apertadas em um município com 370.000 eleitores. São 11 vezes mais mãos direitas apertadas que eleitores. O pobre eleitor terá que ser importunado muitas vezes, ouvir promessas vãs e inconstitucionais e terá que escolher, finalmente, 1. Este candidato, dominado pelo calor da disputa, não computa as traições parentais, incluídas as esposas ou esposos e filhos, nem o indescritível sofrimento para atender aos interesses da coligação, aquela agrura para o índice partidário podendo obter os 2,4 ou 5.000 votos e, ainda assim, amargar a derrota.
Neste cenário muitos reclamam do processo? Raramente, até porque a eleição é um momento do encontro do eleitor com a política e com temas caros à sua vida cotidiana, eleitores gostam da eleição e são contagiados por ela. Reclamações são pouco consequentes, pois, após o protesto inicial, logo a a mesma pessoa estará desfiando juízos sobre A ou B. Cenas de desprezo pela política, ataques virulentos aos políticos que se espraiam no cotidiano operam um encantamento quando próximos a um pleito: "corruptos", "ladrões", "todos iguais", tornam-se candidatos"! O sentimento geral permanece, mas a eleição sensibiliza, irrita, empolga, transforma o debate politico na ordem do dia. Neste momento surgem votos que incomodam: Tiririca, Zé das Couves, Pardal, Tico Tico, Fulano do Sindicato, Sicrano da Escola tal, toda esta mixórdia terrível de letras mal aparatadas entram na vida dos eleitores. Mas não passa pela cabeça de ninguém contestar o resultado, "virar a mesa". Candidatos a vereança são também a linha de frente para ofertar a grande entidade eleitoral que com eles conta como uma infantaria: o candidato ao Paço Municipal.
Sua excelência (o candidato a prefeito) tem soluções mágicas, algumas também irrealizáveis. Como a reeleição é permitida, candidatos no cargo - um evidente problema no universo kafkiano da legalidade eleitoral - divertem-se propondo obras que não fizeram e temas que não trataram, ocultam o aumento do IPTU ou de alguma taxa estapafúrdia, e, considerando que exista alguma intencionalidade republicana, querem uma cidade "limpa", "verde" ou algo que às vezes parece um adjetivo: "cidadã". Pouco importa, porque os demais candidatos veem que tudo que foi feito não serve, as políticas (??) devem ser substituídas e sempre é possível controlar a tarifa de ônibus e os "apetites animais" dos mais afoitos.
Não importa muito se há um enredo de Ionesco em cada eleição, ou mesmo lances shakespearianos de Ricardo III. O eleitor estará lá para escolher, brigar, debater, impor valores e intenções, tornar-se o especialista, enfim participar. Se puder dramatizar o processo, melhor. Campanhas são feitas de uma matéria onde surgem boatos ("vai mudar a lei tal, ouvi de alguém"), mentiras ("este aí votou o fim do 13º salário, me disseram"), pessoas murmurando boatos e mentiras pelos pontos de ônibus ou dentro de coletivos, e, claro, também verdades - denúncias coerentes, propostas eventualmente realistas, identidade com parte importante do eleitorado. Como no pleito para o Legislativo ninguém ousa pensar em denunciar o resultado ou não aceitá-lo.
Estranho caso: durante quase 4 anos, fala-se mal da política. No intervalo de algo como 70 dias, a eleição ganha corpo e respeito junto ao eleitorado, que participa do debate como nunca e mesmo diverte-se com a festa nas ruas, na TV, no rádio e até na internet, mas também nos salões paroquiais, nas praças, nos comícios. Não tem música ao vivo com grupos populares? Que nada, o próprio candidato pode cantar. Não tem outdoor? Não tem problema, a justiça chega para determinar o tamanho da placa permitida. E os indefectíveis, inúteis e mal escritos " santinhos", que tanto dinheiro dão às gráficas? Circulam como nunca, não informam ninguém, mas incomodam mais pela sujeira que pelo conteúdo, eventualmente divertido.
É inegável que o Brasil já tem o ciclo eleitoral naturalizado, em outras palavras ele rotinizou as eleições. Mas ao contrário de regimes democráticos mais antigos, ele não a transformou em ritualística pura. O eleitor aprecia o embate e quer dele participar. Mais, a vida política nas instituições eleitorais é suficientemente institucionalizada para operar conflitos e mediar questões variadas. A maturação lenta da democracia vai se consolidando. Pode-se tentar explicar isso pela cultura política. Em minha opinião, a cultura política vem operando um grau de institucionalidade e festa que tem sido satisfatório ao Brasil. Repetem-se candidatos? Sim. Alguns são ruins? Sim. Mas, se fossem outros o processo também existiria e seria a mesma diversão. O futuro mudará isso? Quem sabe? 
Eleição é festa, de alguma maneira pouco compreendida pela vetusta análise que deveria explicar o processo. O problema não está em um eleitor que doma sua paixão pela razão (ele não o faz), no homem apático que não vê nada na politica (mas, ele não gosta de participar?), no " ignorante" que não distingue "bom" de "ruim" (mas, para quem seria "bom" ou "ruim"?), na pouca alfabetização ou em pouco desenvolvimento. A questão profunda é que os processos agregados às eleições indicam a vitalidade da política em meio a um mar de renúncias do espaço público, mostram uma racionalidade instrumental combinada a uma emocionalidade única, indicam que é sempre possível discutir problemas públicos em situações públicas. Prazer, humor, rotatividade ou continuidade, frustração e alegria. O resultado é consequência. Ao fim, todos voltam para casa, vencedores e derrotados, mas sem ninguém pensar em ruptura institucional. Em quatro anos, ou em dois, haverá mais. 

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Sobre heterodoxia, Keynes e o mainstream econômico

Em alguns círculos é moda defenestrar o passado. Quando o tempo passa, alguns efeitos vão se multiplicando: esquecimento, abandono, mudança de perspectiva, perda de visibilidade ... . Nem sempre se tem notícia da permanência. Da permanência e não da mera sobrevivência. 
Sobreviver é triste pela precariedade, pela incerteza. Deve-se preferir, em algum nível, a permanência. Algumas disciplinas científicas a exercitam com maestria, outras a substituem pela ansiedade e a velocidade do presente. Entre elas está a Economia em seu formato mainstream (em oposição à Economia Política) e a ela não filiam-se as Ciências Sociais, a História, a Filosofia ou, para alguns uma surpresa, a Física ou a Matemática. Alguns ramos da Ciência Política flertam com esta visão de Economia; se a primeira abastardou-se da Matemática, a segunda pretende ser uma bastarda da economia planilhada? Esta observação nada tem de fobia matemática, pelo contrário, uma vez que esta é essencial ferramenta científica, meio analítico e de prova na maioria das ciências. Modelos econométricos e seus dummy, multiplicadores e funções tornaram-se explicadores da complexidade do mundo simplificando-o em seus próprios termos, crendo explicar desde as curvas de crescimento até os movimentos dos mercados futuros e derivativos. Seu lugar relevante é o mercado, sua glória e seu desastre surgem quando é absolutizado. Uma lógica do presente e do futuro, não do "acontecido".
Houve muitos intelectuais-economistas importantes, quando a Economia Política preservava um status diferenciado. Não exatamente "puros" economistas, mas intérpretes da complexidade do mundo pela lógica da Sociologia Econômica, da própria Economia Politica, da História Econômica. Os cursos permanecem "obrigando" seus alunos a conhecer List, Gerschenkron, Veblen, Polanyi, passando pelo filósofo moral que foi Adam Smith, pela crueza de Ricardo, pelo tenebroso mundo de Malthus (que valeu à economia o epíteto de "ciência triste", segundo Carlyle), a critica devastadora de Marx, a elegância de Stuart Mill e Weber? E que falar de Keynes, o intelectual e operador econômico, e da provocante contradição em Schumpeter? E, para ouvir o "outro lado", as diatribes de Mises, a ironia de Pareto e o atavismo liberal de Hayek? Poderia crescer a lista e ela está adjetivada propositalmente. Qual o problema? Tudo se passa como se a história da ciência dispensasse adjetivos e eles fossem criminosos. Seriam, se tomados como a única fonte de argumentação, mas aqui eles pretendem ajudar a sintetizar preocupações.
Alguém se lembra da lista de Prêmios Nobel de Economia nos últimos 42 anos? Desde sua primeira oferta em 1969? Claro, um ou outro. Mas a persistência da lógica identitariamente econométrica mostra que apenas as grandes diferenças chamam atenção: Amartya Sen é o único, desde 1974, ano em que Gunnar Myrdal venceu, que explicitamente foi justificado como "economia do bem-estar". Por ironia, este ano de 1974 foi o  mais peculiar: junto a Myrdal, o vencedor foi Friedrich Hayek. Economistas institucionalistas e estudos de regulação tiveram importantes vitórias com o honorável Coase (91), Stigler em 82 e Simon em 78; estudos sobre assimetria de informação venceram com Mirrleess e Vickrey (96) e com Stiglitz/Spencer/Ackerlof em 2001; explicitamente sobre desenvolvimento, Schultz/Lewis, em 79. Um economista mais crítico, Krugman, venceu em 2010. Correndo o risco de pequenas imprecisões, em 8 dos últimos 42 anos houve prêmios menos "ortodoxos"; a premiação privilegiou estudos microeconômicos, análise de mercado, teoria dos jogos, estratégia de decisão e similares. Sem passado, sem história, sem medo do futuro... Isto sendo generoso: assimetria de informação não prescinde de modelística, muito menos comércio internacional.
Por mais problemas que o Prêmio possa ter em seus critérios, é a mais cantada lista do mundo. E, sem dúvida, os nomes citados são representativos desta ciência. O recuo para o fundo do palco da formação em economia denominada heterodoxa é patente por toda parte. Sua heterodoxia não reside em fobia matemática, sua resistência é sobre a  idolatria econométrica, seu peculiar desprezo pela história e o descaso com a teoria social no sentido das Ciências Sociais. O problema é que o desafio científico da interpretação é o que importa, e muitos de nós sabem que interpretar, de forma puramente endógena a uma área de conhecimento, é o caminho para o  desastre: perde-se perspectiva, profundidade e historicidade. Não é o caso dos heterodoxos, na maioria dos casos, e dos cientistas sociais
Talvez a grande referência da heterodoxia seja John Maynard Keynes, intelectual refinado, funcionário público inglês, promotor de saraus em companhia de Virginia Woolf, crítico da guerra e ... economista. Não exatamente somente economista politico, mas o fundador da macroeconomia. O texto de Robert Skidelsky sobre ele (a biografia em 3 volumes da Penguin Books) ainda deve ser a grande referência. Seu biógrafo enfatizou que o autor, estudante em Cambridge,  tinha especial dedicação às humanidades, em particular Filosofia e estudos clássicos, paixão que operaria em conjunto com a Economia mas com especial esmero pela primeira em relação a segunda. Sua notável "Teoria Geral" (no Brasil pelas Editora Atlas ou Relógio Dágua) é um texto de um economista, mas não é preciso ter esta formação para admirá-lo exatamente porque Keynes ultrapassa fronteiras. A sugestão de leitura do capítulo 24, "Notas finais sobre a filosofia social a que poderia levar a teoria geral' e do Livro II ("Definições e Ideias") merece ser vista por qualquer cientista social, No capítulo mencionado (p.291 na edição brasileira da Atlas), nosso economista  e amigo da Filosofia alerta:
... as ideias dos economistas e filósofos políticos, estejam elas certas ou erradas, tem mais importância do que geralmente se percebe. De fato, o mundo é governado por pouco mais do que isso. Os homem que se julgam livres de qualquer influência intelectual são, em geral, escravos de algum economista defunto ... a força dos interesses escusos se exagera muito em comparação com a penetração das ideias.  ... Cedo ou tarde, são as ideias, e não os interesses escusos, que representam um perigo, seja para o bem ou para o mal.
Este foi (é) Keynes. Prefere Friedman ou Mises? Azar! Você não sabe o que está perdendo.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Participação, Ilusão, Individualismo - democracia sem instituições?

É importante recordarmos que um dos maiores desafios da democracia contemporânea é a participação, o que produz um paradoxo conhecido: abrem-se os espaços políticos e o nível de atuação dos agentes envolvidos decresce formidavelmente. Os diagnósticos são variados, mas há um acordo sobre o volume decrescente da participação em canais classicamente estabelecidos - sindicatos, associações, partidos. 
Há também outra posição, aquela que defende que estamos diante de uma nova ágora, um espaço de participação de abertura inédita: a sociedade em rede, conectada pela internet. Outros creem que isto é uma realidade tão forte que a "primavera árabe" poderia ter sido provocada pela atuação na rede e nos celulares. A recente crise na Síria é outro exemplo, pois na impossibilidade em confirmar versões, as imagens gravadas por celulares correm o mundo.  
Há juízos apressados sobre esta sociedade conectada. Em seu nome já foi decretada a morte do livro, do comércio em lojas físicas, até da eleição no nível da rua. Esta conexão inédita poderia até promover a realização de inúmeros referenduns online, revolucionando a forma de atuar dos agentes e dos eleitores. Agora a rede faz a "revolução", começando em casa e ganhando as ruas. Alguns apressados intelectuais de esquerda, aqui e alhures, logo se agitam em nome de movimentos que realizam-se fora dos canais institucionais, nas ruas e praças, criando novas formas de atuação.
Novas formas existem, é inegável. Claro que a internet é um meio para convocação e atuação. Mas, o que foi  feito deste movimento no Egito? As eleições consagraram um líder que pouco entusiasmo provoca na Praça Tahrir, os militares bloqueiam o congresso, nenhum dos candidatos mais ligados ao movimento foi ao 2°turno eleitoral. 
O mais importante movimento em curso no mundo, do ponto de vista de uma sociedade crítica, é o Occupy Wall Street. Em várias cidades americanas eles estão presentes, espalham-se pelo mundo (em SP havia alguns recentemente) e tem sido um contraponto crítico fenomenal na rede e AQUI temos um exemplo desta lógica, com o argumento da associação entre bem-estar e os Founding Fathers americanos e mostrando que as cláusulas de bem-estar não podem ser violadas por qualquer interpretação. Mas, ressalta o autor mencionado no link acima:  
a filosofia da liberdade não depende de qualquer texto escrito, ela vive e reside dentro de cada indivíduo em virtude da sua humanidade, não em virtude de qualquer governo.
Portanto, ao lado de um manifesto em defesa do bem-estar, declarações quase " anarquistas". E nos termos de um individualismo despótico que não seria estranho aos liberais do calibre de Nozik. Será coincidência?
Esta é mais uma etapa da espetacularização da vida individual. Todos se importam, todos são importantes, todos trocam experiências, todos falam de si, todos podem escrever poesias, se lamentar, se irritar e  até amar online. O recesso da esfera pública "física" permanece, mas, dizem alguns apressados, em nome de uma nova esfera pública, agora virtual. Nova vida? ainda é muito cedo. Nova ágora? O dia ainda nem começou a clarear.
E, por que diabos tantos problemas com as instituições? O sistema eleitoral não será substituído com facilidade pela ágora virtual,  o jogo da política não sera substituído pelo jogo do teclado, as pessoas não ganham as ruas porque os 140 caracteres do banalizado Twitter assim "empurram". São as regras institucionais que estabelecem parâmetros e organizam interesses, são as firmas, indivíduos, grupos e classes que se organizam em locais reais e disputam o poder. Grupos fazem lobby e greve, organizações administram gigantescos recursos materiais e humanos, partidos se estruturam buscando o poder e interagindo com tudo isso. Occupy Wall Street é muito interessante, os celulares na Síria e no Egito são ferramentas fundamentais, a internet é indispensável para mobilizar, arrecadar, atrair pessoas. Mas, sem a canalização desta energia para a mudança institucional, para ocupar o poder, para estimular estabilidade e regras de convivência, surge a utopia anarquista, a ilusão da "revolução" com as massas ou, pelo lado conservador, o fim da política e da esquerda substituída pela "sociedade dos indivíduos". É disso que se trata?

A crise sem rodeios - Rodrik e Eichengreen

Recentemente ocorreu no Brasil um importante seminário no BNDES tratando de "O Mundo e o Brasil em 2022", com as relevantes presenças de Dani Rodrik e Barry Eichengreen. O BNDES disponibilizou slides utilizados pelos conferencistas AQUI. Não entendo porque não fizeram o mesmo com os papers

Dani Rodrik termina assim:
The world economy is more likely to provide headwinds in years ahead than tailwinds Ultimately, growth depends primarily on what  happens at home 
Desirable policies remain the same:
  • stable macroeconomic framework
  • incentives for economic restructuring and  diversification (both markets and government)
  • social policies to address inequality and exclusion
  • strengthening of institutions over time
Eichengreen, refletindo sobre a crise e o papel das moedas de reserva, escreveu:
So how do Iview the exchange rate picture overall?

• The dollar  should be a strong performer for the remainder of 2012.

– Least unatractive contestant at the beauty pageant…

– Global flight from risk will work in the dollar’s favor.
• The euro will be weak. – The ECB will be catching up to the Fed.
• Strong yuan or weak yuan? – If the Chinese economy conInues to  
slow, then a weak yuan will be part of  the policy response.

But what if neither the euro nor the yuan steps up?
• The world will have no choice but to rely on dollars for internaIonal liquidity.

• But, eventually, the the capacity of the United States to supply them will be cast into doubt. • The worst of all worlds would then be if investors lose confidence in the dollar before alternaIves had time to emerge.

Ao fim, segundo ele, dois países poderiam oferecer-se como, em 10 ou 20 anos, provedores globais de liquidez: Brasil e Índia.

Independente do juízo, a ameaça crescente à economia global é o traço mais permanente neste ano. Para Rodrik, muito do que se faz em casa importa, mantendo a estabilidade, incentivando reestruturação, atuando contra a desigualdade e fortalecendo instituições. Malgrado o fato das especificidades europeias - o Banco Central Europeu e as instituições supranancionais europeias, é impressionante como a União se fecha às vozes dissonantes.

Por sua vez, diante do exposto por Eichengreen, o futuro poderá nos trazer um cenário com graves questões de liquidez internacional. Nos Estados Unidos o crescimento das exportações está em queda, a recuperação das hipotecas é lenta, as famílias permanecem muito endividadas, a ação do FED é tímida e a confiança do consumidor pouco significativa. Na Europa, os bancos deveriam se recapitalziar, o crescimento retornar e a dívida ser reduzida. o problema, entre outros, é a posição conservadora alemã, que bloqueia duas das três situações. Na china, seu crescimento se reduz, seu mercado financeiro não é profundo, há dúvidas sobres eus bancos, um forte déficit democrático e, não menos importante, no cenário de desaceleração, a posição cambial pode ser manter o Yuan desvalorizado. Está montado o cenário de desastre.

E tem mais Roubini por aí, que aposta em um 2013 catastrófico ...