sábado, 30 de março de 2013

Um lugar para Chávez em "outra" América Latina

O problema com este espaço virtual é não tornar-se seu escravo. Me saio perfeitamente bem, porque aqui não posto desde dezembro. Eventualmente volto aqui, vejo as teias de aranha e nem sempre me animo a escrever. Mas alguns temas tem voltado à tona na agenda e creio que sejam suficientemente provocantes.
É o caso da morte do Presidente venezuelano Hugo Chávez. Nada tenho contra Chávez, apesar de desconfiar dos seus arroubos nacionalistas ou personalismo excessivo. Entretanto, reduzir a figura do presidente a este chavão é de uma indigência exemplar, porque emerge daqueles que estão perdendo os movimentos na América Latina naquilo que tange à sua vida política e econômica. 
Um dos que esteve em Miraflores antes de Chávez foi Carlos Andrés Peres. De passado mais a esquerda, elegeu-se duas vezes com discurso crítico aos organismos internacionais e credenciado por um programa popular. Já no segundo mandato mudou de rumo, convergindo para a combinação de servilismo político e mimetismo institucional aos modelos de gestão e reforma de corte liberal. Nada demais, era assim na Argentina, no Equador (que acabou com sua própria moeda e assim permanece por não saber como voltar sem custos exagerados), na Bolívia e sua elite política golpista ou privatista (ou a combinação de ambos), no Paraguai, no Chile pós Pinochet e no Brasil até 2002. Mas a combinação infeliz de crise, miséria e reformas mal sucedidas ajudou a conduzir Chávez ao Palácio. Claro que a história é mais complexa, mas Chávez - ou Evo Morales, Rafael Correa, Lugo, Bachelet, Lula ou Kirchner - sem contar Mujica, mais recentemente - tiveram grande ajuda da combinação de estagnação, crescente pressão social, reformas mal sucedidas e uma década de problemas. Esta é parte da explicação da origem, mas diz pouco sobre o que aconteceu depois. 
Entre os críticos empedernidos e os defensores acríticos vigora parte de uma miopia em relação à liderança popular e ao conjunto das ações de Chávez. Cabe lembrar que ele tentou antes um golpe de estado pelo qual foi preso e de onde saiu para vencer as eleições. Da mesma forma, a direita venezuelana não hesitou em tentar outro golpe, mais agressivo, prendendo Chávez. Pouco durou - e reforçou muitíssimo a visão da política e das reformas venezuelanas sob o comando do presidente restabelecido. Em uma de suas reeleições, a oposição cometeu o maior equívoco político da história democrática venezuelana e não participou do processo eleitoral. Criou um imenso vácuo e deu à situação toda a possibilidade - legítima - de reformar a Constituição e moldar o país a sua feição. E ainda contando, para isso, com apoio popular.
Chávez impede a oposição de se manifestar? Onde? Os jornais circulam, existem muitos canais de TV privados que fizeram campanha anti-Chávez e estão no ar. O que ocorreu foi mudança ou aplicação de marco regulatório - que também ocorreu no Equador e na Argentina. Até a oposição precisa ter consequência, para evitar a política de ódio e uma sucessão de fracassos. Sem esquecer que estes setores contrários ao Presidente não são um todo ordenado, mas antes são grupos com interesses diferentes e dispersos, da elite oligárquica tradicional até pessoas genuinamente preocupadas com o conjunto da nação, como muitos estudantes e parte da esquerda. Entre estas certamente não se destaca a mídia que participou do golpe contra Chávez nem as viúvas do petróleo que controlavam a PDVSA.
Pois Chávez era (é) inegavelmente popular. Seus laços com os pobres e com as periferias, com programas inclusivos e um nacionalismo destacado, sentado sobre um mar de petróleo sob controle estatal e oferecendo uma vida menos ordinária aos deserdados e esquecidos pela política no passado é a chave de seu triunfo e do imenso cortejo vermelho que se seguiu no triste dia - para aqueles milhares e milhares de pessoas que acorreram às avenidas de Caracas - logo após o anúncio de sua morte.
A invocação permanente de Bolívar, uma referência nacional apropriada por Chávez, tornou-se o sinônimo de sua cruzada. Com Bolívar ele tomou a figura do " libertador" como sua e dos mais humildes, tomando-a das elites oligárquicas tradicionais; tornou Bolívar parte do imaginário local como representante de um socialismo algo confuso. Mas, para ele mesmo e seus milhões de seguidores esta pouco esclarecida ideia de socialismo não tinha realmente importância. Quase poeticamente importava era a caminhada, a adesão popular e o Estado no comando de um processo de mudança. As ideias abstratas e um programa de longo curso com relação " ao início do fim das classes sociais" - sem ironia - não eram a questão. A questão era uma sociedade, parte importante dela,  mobilizada em torno de um programa de mudanças. Seu mote era movimento, ação, voluntarismo. Uma democracia "street level", pouco afeita ao jogo da oposição. Incapaz de competir neste nível ela fracassou e Chávez consolidou sua força e seu poder.
Alguns detestam isso? Pouco importa, porque trata-se da vontade do eleitorado. Ainda que persistam dúvidas sobre a força das instituições e dos mecanismos de equilíbrio inerentes a democracia representativa, não se pode acusar Chávez de diminuí-la porque sua base de apoio é popular. No limite das regras ele fez seus mandatos, o que não pode ser dito da oposição golpista que tentou apeá-lo do poder. A Venezuela tem problemas? Claro que sim. Persiste desigual, precisa melhorar a infraestrutura, redefinir o setor petrolífero como alavanca de desenvolvimento econômico e aumentar a diversificação produtiva . Está melhor que antes do presidente Chávez? Sim, lamentavelmente para a oposição venezuelana (para Capriles ou o triste golpista Carmona e a Globovisión), não somente está melhor como agora a sombra de Chávez paira como um fantasma desafiando seus inimigos. 
A América Latina mudou muito na última década. Olhou mais para dentro de si mesma, manifesta vontade de retomar o rumo de sua história, incluir mais e reorganizar seus espaços nacionais e preocupada em inserir-se menos inativa à economia global. Isto vem incomodando as elites tracionais, da economia e da política. Não se pode olhar para Argentina, Uruguai, Peru, Equador, Bolívia, Venezuela, o Brasil - e até a Colômbia - e dizer que estamos em um mundo pior e sem esperanças. Os dados não indicam isso, as condições de vida não mostram isso, a dinâmica eleitoral não mostra isso. É o paraíso? Claro que não, ó direita sem fé. Não há mais nada a melhorar? Claro que há, ó incautos conservadores. O Paraguai, para fugir desses tempos, voltou com uma inovação: o golpismo constitucional de 24 horas. Não somos os coreanos, chineses ou tailandeses, ou a ilha de Singapura? Do meu ponto de vista, ótimo. O comparativismo fácil com a Ásia explica pouco e é plenamente a-histórico - PIB, dívida pública ou superávit primário  falam alto sobre macroindicadores mas pouco sobre as mudanças no nível da rua ou das condições de vida. Pois é isto que está operando na América Latina: sem golpe, sem ruptura, com respiração pausada.  Parte da direita oligárquica pode pedir asilo na Tailândia ou em Singapura e fazer seus negócios por lá ... Ou pode tentar retomar o poder olhando para a rua, as instituições, sem golpe ou respiração acelerada pelo ódio. Muitos deles andam precisando de doses maciças de ansiolítico ... .