sábado, 20 de abril de 2013

Margaret Thatcher - "milk snatcher", "iron lady", Primeira-Ministra

   Uma das notícias mais acompanhadas nas últimas semanas foi a morte de Margaret Thatcher. A primeira mulher a assumir como premier da Grã Bretanha (1979-90) foi a mais polêmica líder inglesa do século XX. Churchill  (1940-45 e depois 51-55) provocava polêmica, seja pelo estilo, as frases de efeito e sua inegável liderança, mas sem o alcance da amplificada presença de Lady Thatcher.  Clement Atlee (45-51) foi um impulsionador do welfare state a inglesa, fundando o NHS e nacionalizando ferrovias e portos. Seria o contraponto  de Thatcher, ainda que sem o prestígio externo que a  primeira-ministra gozou entre seus pares enquanto governou.  A regra aos líderes ingleses era mais a discrição que a vontade pública de potência - talvez com as exceções acima citadas mais Ramsay MacDonald, o primeiro trabalhista a ocupar o cargo em 1924.
   Margaret Thatcher, muito mais que seu citado par norte-americano, Ronald Reagan, representou uma tentativa de ruptura com o passado. Sua carreira já era longa quando assumiu o principal cargo do Reino Unido: deputada desde 1959, no início dos anos 70 foi ministra da educação, deputada líder na oposição conservadora entre 75 e 79. Há dois fatos políticos relevantes que marcaram sua carreira negativamente e que representam dois momentos opostos de sua trajetória: o primeiro foi, quando ministra da educação de Edward Heath, impôs restrições orçamentárias obrigando às escolas o corte do leite na merenda das crianças entre 7 e 11 anos . Seu primeiro apelido não foi "iron lady", antes havia sido "Thatcher, milk snatcher". O segundo foi o famoso poll tax de 1990, que resultou em sua queda e que mencionarei abaixo. Esses dois momentos indicam tanto sua força quanto sua confiança, ambos os episódios com resultados trágicos para sua atividade política.
   Talvez tenha sido ela a única a assumir como premier que possuía formação científica sólida, em química. Desde jovem admirava Hayek, o que ajuda a explicar muita coisa. Sua admiração pelo Institutte of Economic Affairs (IEA) um gueto hayekiano , think tank antikeynesiano responsável pela retórica "menos governo, menos imposto, mais liberdade", auxilia em compreender o resto. O IEA é tudo que o inusitado Instituto Milenium , e seus porta-vozes na imprensa, os também inusitados "veja" e "globo"(com minúscula mesmo), gostariam de ser em território nacional, sem o mesmo discreto charme inglês e com menos inteligência. Da vivência política liberal de Thatcher, e de sua notável persistência e liderança, nasceu um mito da política do século XX, mito alimentado pelos conservadores como exemplo de sucesso e que mais colecionou frustrações - para todos - que resultados positivos. Sua influência e seu legado são outro caso.
   Tomemos seu governo. Podem ser listados todos os mantras: privatização, redução de impostos progressivos, ode ao individualismo, corte de gastos, fim do salário mínimo, redução (ou destruição) do poder sindical, dos gastos sociais, do welfare state, da regulação estatal e incentivo à liberalização dos mercados.O neoliberalismo - de Hayek, Popper, Friedman - ganhava dimensão política e, claro, ideológica, definitivaO histrionismo de Thatcher, parte importante de suas declarações públicas, levou a guerra ideológica à imprensa, universidades, institutos variados e produziu seguidores animados, alguns deles também estimulados por uma ditadura política, como um general chileno cujo nome nem deve ser pronunciado e certo presidente argentino que acreditava em duendes, no livre-mercado e na paridade peso-dólar. Também foi seguida e elogiada por reformistas liberais na Polônia e na República Tcheca, sem contar o lamentável Bóris Yeltsin. Para não ficar apenas em políticos exóticos, temos também curiosos europeus como José Maria Aznar na Espanha, Cavaco Silva em Portugal ou o magnata italiano Silvio Berlusconi. Já no Japão e nos asiáticos  emergentes - da China a Coreia (com talvez a exceção de Singapura), ou na Europa da França e da Alemanha, não existe culto ao mito. Afinal, não se pode confundir respeito pela liderança que Thatcher representou com devoção teológica ao mercado que ela dizia ser o caminho da salvação.
    Lady Thatcher chega ao poder em uma conjuntura de inflação alta e desemprego na casa de um milhão, greves sucessivas e enfraquecimento dos trabalhistas. O tema do desemprego torna-se uma chave política decisiva. A campanha de Thatcher envolvia o ataque aos privilégios, ao poder sindical e o fim das "amarras governamentais" ao crescimento. Sua vitória terminou representando uma virada importante na vida inglesa, desafiando a própria tradição do pós guerra.
    Thatcher triunfou indiscutivelemnte em dois campos de seu longo governo - a guerra de propaganda e a quebra do poder sindical na Grã Bretanha. Sua política de controle de preços foi central nos primeiros anos, bem como a sobrevalorização da libra. O resultado econômico prático, acompanhado da politica de cortes de gastos e subsídios plus privatização é conhecido por qualquer um que acompanha o tema: ampliação das importações, dificuldades na indústria, recessão, desemprego acelerado (esqueçam o 1 mihlão dos trabalhistas, com Thatcher rapidamente avançou para 3 milhões), aumento expressivo da desigualdade. Nos informa Andrew Shefhard que, nos anos 1990, o ìndice de Gini indica expressivo crescimento da desigualdade sob Thatcher, estabilidade com Major e ainda crescimento sob Blair (p.4). E, o mais relevante,
This is in stark contrast to the changes that occurred when Margaret Thatcher was in power, during which time the poorest group gained just 0.4 per cent on average per year, compared with the 3.8 per cent gain of the richest group (p.2).
  É importante observar que o thatcherismo adotou o firme propósito político em enfrentar as instituições do pós-guerra e reformar a economia britânica. Os resultados econômicos são pífios - pelo menos para os mais pobres, a classe média e o sistema de bem-estar. Na relação com a Europa encontrou um forte adversário em Jacques Delors, o então presidente da Comissão Europeia que tentava construir um padrão europeu de bem-estar para o conjunto do continente. Thatcher afastou radicalmente a Grã Bretanha de tal projeto, na prática impedindo que este avanço, em meu juízo, se concretizasse. A grande batalha vencida pela Primeira-Ministra foi a disputa da greve dos mineiros, em 1984, onde meses se arrastaram sem solução e ela nunca aceitou negociar. O resultado lhe conferiu desgaste, mas consolidou sua imagem de vontade férrea e que buscou  reduzir (ou terminar com) a interferência sindical em comissões estatais, como a do salário mínimo. Neste meio tempo, suas ideias foram ganhando o mundo e, pouco depois, insuflavam a nau do livre mercado pela periferia do capitalismo, na América Latina e na Europa. Aliás: suas não! Como propagandista que era as embrulhava com esmero e as lançava ao oceano.
   A política externa da época era uma combinação de anti-sovietismo - onde ela e Reagan mais se acertavam - e anti-europeísmo. A alcunha de "dama de ferro" vem dos ataques à União Soviética, não de outro fato. De meados ao fim dos anos de 1980 a antiga URSS foi bombardeada por Thatcher, Reagan e João Paulo II sem um único disparo, apenas gritando contra o totalitarismo, a agressividade soviética, o desrespeito aos direitos dos cidadãos e a ineficiência econômica. Thatcher estava nesta linha de frente - e a frente. O anti-europeísmo surge como defesa intransigente da Grã-Bretanha e da oposição a qualquer alteração mais abrangente no Tratado Europeu. Mas é outro fato externo que facilita sua vitória em uma eleição intermediária: a chamada "guerra das Malvinas"(1982) que lhe rendeu propaganda e grandes índices de aprovação, mesmo com recessão e desemprego. Sua vitória mais apertada ocorreu em 87, onde a economia quase lhe custou o lugar. Após este momento, Thatcher deu seu ultimo passo em falso: o poll tax.
Proposto em 89 e com entrada em vigor em 1990foi um imposto que deveria financiar os governos locais. Tratava-se de um tributo per capita, devido por habitante, que deveria ser pago anualmente. Nos melhores moldes republicanos dos EUA, proporcionalmente os mais pobres sofriam mais. Seu resultado foi um motim: manifestações  conflitos, desobediência civil. Chega a ser irônico que os liberais, que tanto defendem "revoltas contra os impostos", tenham tido seu bastião mais caro derrubado por uma. Em meio a crise, John Major toma  a liderança dos Conservadores - ela dorme em Downing Street e acorda em um banco de jardim na Russel Square.
   Então como avaliar Thatcher? Uma campeã liberal, crente fervorosa do livre mercado e liderança indiscutível? Todas as três possibilidades são verdadeiras. A versão cinematográfica capitaneada por Meryl Streep é uma boa versão da história: mais uma personalidade peculiar e forte, uma mulher coerente com seus princípios até o fim e que questionava a si mesma sobre sua liderança. O silêncio do filme sobre economia é evidente. Mas, independente da película, como é possível silenciar sobre sua gestão econômica? Se os princípios defendidos por Thatcher, sua pedra de toque, foram tão disseminados, como não realizar a tarefa? Seria ótimo se economistas liberais explicassem melhor o desemprego, a recessão, o empobrecimento, os impostos regressivos, sem voltar suas baterias, como sempre, para o welfare state. Seria Thatcher, por outro lado, a última expoente da guerra fria anti soviética, combatendo simultaneamente em duas frentes? Pelo fim do socialismo real e pela sua substituição pelo sistema de livre mercado? Uma garantia ideológica de que o regime de bem estar ideal é a ausência do estado social? Novamente, ao meu juízo, sim. É aqui onde a timidez de seu efetivo resultado econômico - desemprego  recessão, empobrecimento - contrasta com sua influência e seu legado*. Escrevi acima que a batalha na imprensa e contra os sindicatos ela venceu. Para ser justo, seu programa de privatização, mesmo sem produzir os milagres propugnados, resistiu. Mas, como isso se disseminou? Como estas ideias econômicas, parodiando um texto de Peter Hall, ganharam poder político? Com Thatcher elas ganharam um mito e um símbolo. Seu sucesso na Europa pós-queda do Muro surgiu na terra arrasada do fim da era soviética, onde o Estado, desmoralizado e fraco, colonizado por uma burocracia cega e um partido geriátrico, abriu espaço ao "mundo livre". Assim, o mundo viu o desmantelamento das antigas estatais, o fim dos subsídios, o desemprego e as novas nomenklaturas. Do partido à plutocracia, na Rússia, foi um salto breve. Polônia e República Tcheca imolaram o bezerro no altar do livre mercado e colheram os ventos do empobrecimento e da desilusão. Na América Latina o Chile tornou-se um laboratório de reformas: previdenciárias, do emprego, da educação, da justiça, da privatização. A Argentina passou a década de 90 na mesma toada; o Equador liquidou sua moeda, Fujimori, em nome do livre mercado, produziu formação de quadrilha e o México, pobre México, também se entregou ao fastio do NAFTA e hoje, se os EUA espirram, Ciudad Juarez treme no horizonte e a Cidade do México corre com o analgésico. Da crise e escombros do socialismo real triunfa a marca neoliberal. Da crise das ditaduras e dos fracassos econômicos na América surge a redenção. O tempo encontra a mudança da maré, a política encontra o teatro econômico do livre mercado. Foi aqui que a política também sucumbiu à economia
   Quem mais montou o cenário, quem foi a principal propagandista, a redentora do modelo? A Baronesa Thatcher. O personagem encontra o autor. Como uma ideologia - e sua prática - econômica do século XIX ganhou ares de novidade no século XX? Pelo fracasso das ditaduras e como resposta à crise dos anos 70 no capitalismo central e dos anos 80 / 90 nas outras repúblicas latino americanas e do leste europeu. O cenário se armava, os atores se preparavam, o ambiente político se alterava - o resultado foi que a vitória dos conservadores na Grã Bretanha foi um sinal inequívoco de quem as condições haviam amadurecido o suficiente. A percepção disso pelo eleitorado é mais obviamente difusa, mas ficou claro que a adesão aos conservadores havia crescido com notável força. O conservadorismo no Reino Unido havia abraçado também um novo credo econômico que tratou de implantar com notável ferocidade - desregulamentando, liberalizando, cortando. O poder reunido de um conservadorismo liberal, aparentemente contraditório mas evidentemente complementar, como o futuro viria mostrar. Thatcher foi o típico caso em que elemento individual encontra-se notavelmente associado ao ambiente político de tal forma que ele se manifesta como líder, encarnando tanto o movimento mias geral de descontentamento e por mudança - infelizmente, neste caso, à direita. Assim, pouco importa a falta de resultados econômicos e de bem estar, a longa permanência encarregou por lapidar o mito.
   Houve uma geração contemporânea de Thatcher que começa na esquerda democrática, que assumiu  com este rosto e, no mínimo, terminou naquele de centro-direita. Penso especificamente em François Mitterand e Felipe González. Pretendo desenvolver este raciocínio em outra postagem, pensando no vácuo das lideranças de esquerda e o aceite do jogo nas regras do adversário. A uma esquerda perplexa com a eliminação do socialismo real, a já longa crise econômica, as ditaduras apodrecendo em meio a um Estado que era "forte"como poder de polícia e fraco como regulador por muitas partes do globo, construíram o cenário.  A manifestação de uma crise cultural no modelo do pós guerra pareceu assomar no horizonte, com pressões que vinham contra a burocracia e  uma nova agenda de novos movimentos. Ainda que uma parte dela tenha vindo da esquerda, e a esquerda democrática no ocidente nada tivesse com o socialismo soviético há muitos anos, foram os conservadores que capitanearam a mudança. Ninguém melhor que Thatcher para representá-los - liderança forte, atendia a demanda de gênero, discursava contra os "excessos" estatais e em nome dos indivíduos. Foi o suficiente para representar, mais pelo símbolo que pelos resultados, a vontade de potência do capital financeiro e do livre mercado. Levaria dez anos para a esquerda recuperar parte das perdas, sem nunca mais ter deixado de conviver com as promessas de cartomante do neoliberalismo.
   Margareth Thatcher se foi. O mito permanecerá na mente de muitos de sua geração, mas não deixa de ser irônico que sua saída de cena corresponda a uma contestação tão forte dos dogmas que ela defendeu por tantos anos.  A grande crise de 2008, a segunda maior do século desde 1929 (aquela que serviu de enterro desonroso para o liberalismo do século XIX), em grande medida foi a coroação dos anos de desregulação, desregulamentação e rentismo. Os líderes não entenderam a mensagem ... ainda. Cópias "piratas" de Thatcher, como a lamentável premier alemã Angela Merkel, estão sob pressão por sua lógica de austeridade. Por isso a esquerda democrática precisa voltar a pensar como esquerda, parando de jogar nas regras dos adversários e comprando uma ideologia que não pode ser sua. O fantasma de Thatcher ainda paira forte sobre o Reino Unido. No Brasil a lamentável imprensa conservadora, que jamais se assume como tal, lamentou com carpideiras a morte de Lady Thatcher. Na Inglaterra, pouco se viu de apoio a ela, mas, em compensação, a ira explodiu do outro lado. Veja este vídeo da BBC onde se discute se a emissora deve ou não tocar a recente ascensão à parada de sucessos de uma música do Mágico de OZ, sugestivamente The Witch is Dead (veja aqui). Sinal dos tempos. Rest in peace, my Lady. Como gostam os ingleses, keep calm and carry on ... e agora a esquerda, por favor.

* Como informação extra, Tony Blair, em um dos poucos atos mais próximos ao trabalhismo clássico, retornou com a política de salário mínimo.