domingo, 8 de fevereiro de 2015

A esquerda na terra da distopia conservadora: em defesa do abandono das teorias conservadoras da crise e da governabilidade

        Escrevi neste espaço dois textos anteriores: o primeiro sobre fatos da conjuntura, mais horizontal e sobre elementos cotidianos; outro tematizando a formação de uma nova direita, aquela que funde o tema do conservadorismo ético-moral com rasgos de liberalismo econômico. Esta aproxima-se de uma composição ideológica nascida na década de 80 mas com traços particulares ligados às nossas estrutura de classes e formação econômico-social. Seu desenvolvimento recente guarda relação direta com a trajetória da centro-esquerda no comando do Estado, assinalando o contraditório após alterações importantes no tecido social. Impaciente com mudanças e afastada do núcleo decisório sobre políticas públicas, ela busca transformar  o cenário em uma crise sem fim - uma realidade distópica - com a tradicional ação da grande imprensa familiar e a atividade deletéria das forças anti-Estado e do individualismo possessivo. Se há uma nova direita, cada vez mais consolidada, forças políticas no governo comportam-se como derrotadas, ainda que, pelo menos formalmente, tenham vencido as eleições presidenciais. Creio que optar por tratar da questão em termos de direita/esquerda não é empobrecedor, simplificador ou lugar comum, é uma opção de análise entre outras. Por isso cabe perguntar: diante de uma nova direita, existe uma nova esquerda?
Não, a resposta mais simples e direta é esta. As forças partidárias organizadas a esquerda não tem estado à altura da realidade. No que tem de tradicional, não compreendem a dinâmica contemporânea da juventude, da sociedade de massas tecnologizada, da resistência organizacional e de uma classe trabalhadora mais diversificada e com mediações em uma cultura mais fortemente individualizada e mesmo competitiva. Tem dificuldades em absorver novos setores médios que, por mais que tenham emergido nos últimos anos, tendem a se comportar como se isto fosse fruto exclusivo de seu esforço individual- sem nenhum apoio das políticas públicas estatais de inclusão . Diante da ofensiva combinada de um discurso moralista vazio e da "incompetência" do Estado “corrupto” e  “ineficiente”, nossa esquerda brada apenas valores coletivos contra a desigualdade. O problema é que a raiz individualista e o narcisismo, combinados com a mercadorização completa, operam contra ela, convertendo valores coletivos em distantes e a compra da última novidade em algo mais premente.
Podemos tentar aprender com a história. Tomemos o caso onde a centro-esquerda levou a cabo uma reforma civilizatória de primeira ordem: a Europa ocidental. A reconstrução europeia do segundo pós-guerra (uma trajetória, em alguns países, iniciada ainda antes) deve muito à antiga social-democracia europeia e sua adesão aos valores democráticos e reformistas. Ela produziu dois movimentos combinados de notável repercussão: a redução da desigualdade, da pobreza e dos males sociais mais comuns, por um lado, e, por outro, combinou notavelmente a lógica do crescimento econômico com equidade. O fato do risco de pobreza, uma estatística europeia importante, haver sido drasticamente reduzido entre os anos de 1950 a 1980, mesmo em países como o Reino Unido, não é nada desprezível, bem como a universalização de serviços públicos de qualidade é um referencial que permanece mesmo hoje, tempos difíceis de austeridade. A ainda muito presente (infelizmente) década de 90 alterou muito o ambiente político-econômico, particularmente pela globalização financeira e produtiva aprofundadas. Deslocando unidades inteiras de produção para a Ásia, a maior beneficiária, e ampliando a mobilidade de capitais por todo o mundo, as políticas market friendly passaram ao ataque contra estruturas de bem-estar. A Europa ocidental resistiu mais ou menos bem a isso, remodelando e ajustando seu sistema de proteção social … até a crise de 2008. Neste momento, a centro-esquerda europeia realizou seu dobre de finados: ao invés de enfrentar a maré, em uma crise criada pelo grande capital financeiro e seus desdobramentos nas unidades produtivas dominadas pela tesouraria, optou por dedicar-se a assumir o discurso da direita conservadora, como se fosse a esquerda a culpada pela crise. Suas vitórias, poucas, eram acompanhadas de medidas de austeridade e, onde ela estava no poder aplicando as mesmas medidas conservadoras, foi derrotada - caso de Portugal, Espanha ou  Grécia. A esperança na vitória de Hollande na França, o insistente contraponto geopolítico à Alemanha dentro da União Europeia, foi a maior decepção. O Euro determinou o caminho e todos lá se foram - contra sua tradição, todos os sinais de alerta e o próprio agravamento da questão social.
A América Latina seguiu um caminho inverso e tem resultados melhores. Mas, que importa? Para as forças de centro-esquerda brasileiras mais próximas ao poder a campanha foi de continuidade - e agora sua prática tem sido mais "francesa" que qualquer outra coisa. Emparedada por um discurso hostil e “udenista”, uma imprensa conservadora golpista, uma classe média tradicional incomodada, a resposta tem sido reafirmar valores econômicos rentistas e austeridade fiscal a qualquer preço. Afastando-se de suas bases de apoio, o governo isola-se no Palácio, não tem porta-voz, não disputa o jogo político falando “para fora” e parece acuado pela selvageria da nova direita. Esta centro-esquerda, incapaz de sair da armadilha de governabilidade, não consegue mobilizar setores de apoio mais amplos - entre jovens, uma classe trabalhadora renovada, setores médios emergentes ou mesmo apoiadores tradicionais. queima as pontes em direção à sociedade em nome da austeridade em um movimento - sem o Euro - como aquela da França, da Espanha, de Portugal, da Grécia … .
A esquerda carrega seus valores e seu programa, nunca é demais relacioná-los. Ao meu juízo, o combate a desigualdade; tributação progressiva sobre a renda (incluindo tributos sobre grandes fortunas); políticas públicas inclusivas, gestão econômica combinando equidade e eficiência; alto nível de regulação com um Estado ativo e operoso; um mercado operante e ativo, mas com freios e contrapesos; a propriedade privada em função social e não um valor absoluto,; serviços públicos em escala compatível com a qualidade e em função da cidadania, no limite buscando universalidade; compromissos com o setor produtivo e seu ator-chave, o empresariado, em função de estímulos condicionados a emprego e crescimento; o diálogo com os setores organizados na sociedade em fóruns adequados e a capacidade em estruturar demandas à esquerda nos setores emergentes;  Neste sentido o que parece estar envelhecido não é o programa, mas muito mais as práticas e as operações políticas. As conservadoras teorias da crise e da governabilidade terão sempre uma decisão primária e única: a estratégia conservadora na fórmula de rentismo + austeridade / - investimento social e na produção, freando a queda da desigualdade e ameaçando o emprego sem produzir crescimento. Pode trazer tranquilidade pelo lado da finança, mas com um alto preço em relação aos resultados econômico-sociais e ao apoio politico das forças de centro-esquerda na sociedade. A aliança frágil do governo com os setores comprometidos com as reformas de interesse popular corre perigo sem resultados e sem ação; pela inação do próprio governo. 
Neste momento somente um lado fala, combate, ataca. É uma luta sem adversário,  o país  como distopia. Do desmonte da Petrobrás ao congresso, das notícias ruins sobre preços e a erosão de confiança, a nova direita não perdeu um único round deste novembro. É preciso reagir e reconstruir as pontes com nossa história e as lutas e conquistas recentes; mudar a linguagem, superando a esquerda de caserna que atrai apenas os disponíveis para uma jihad social (pouquíssimos); passar a atuar com ferramentas tecnológicas mais efetivas; restabelecer o debate cm sindicatos e organizações e estreitar laços com setores menos estruturados mas sensíveis à pauta de esquerda.  Restabelecer um diálogo social fortalecido com interlocutores abertos ao diálogo e em instituições com empoderamento suficiente para influir na agenda - o contrário do que o governo Dilma fez no primeiro mandato e vem insistindo agora. Enfrentar o debate com a mídia e disputar espaços sociais  por uma hegemonia que reaja ao poder da nova direita. Não seria ousado dizer que, para a principal expressão desse grupo no poder, o PT precisa ser refundado. E que o governo pare, agora, de errar no dia a dia, na conjuntura mais comezinha: na Petrobrás, no setor elétrico, na falta de um porta-voz que cotidianamente enfrente a agenda negativa e na desastrosa busca por uma governabilidade medíocre diante de um congresso hostil. Reconstruir a base de apoio é agregar no Congresso forças de diálogo, não forças de pura barganha. Solto no ar, sem apoio externo e sem capacidade parlamentar as chances de um "golpe paraguaio” aumentam dramaticamente. Que o governo entenda que sustentar a própria mídia não a levará a contemporizar e que precisa melhorar sua estratégia de comunicação. Que explique de que forma a "austeridade" vai produzir bem-estar, se isto for possível!. Quanto mais fraca a atuação, quanto mais isolado e inoperante, mais o governo fortalece a fisiologia , a oposição e os aliados de ocasião.  E, por outro lado,  mais seus apoios na sociedade minguam.
A conjuntura muitas vezes desperta a impaciência do leitor ou até do analista. Nesta série resta ainda a necessidade de escrever um texto relacionando nosso cenário com a cena internacional. Ao leitor é dado perder a paciência e acreditar que análises são inefetivas, os textos carregados; ao analista isso não é permitido. Como aqui importa a análise, por mais que estejamos em um esforço enorme para interpretar a pantanosa conjuntura, ao leitor que não goste só me cabe o pedido de desculpas. Há também sempre outras plagas a explorar, se assim desejar.


Som e fúria – a conjuntura e a nova direita

A conjuntura muitas vezes parece desconexa. Fatos isolados ou com aparência de pouca conectividade se manifestam, o que não significa que não gozem de uma conexão mais profunda. Fatos econômicos refletem um padrão na relação Estado/mercado; governo/oposição ou ações aparentemente isoladas de parlamentares indicam o jogo político e de concepções; movimentos sociais e suas concepções e as ações cotidianas da mídia não estão isolados, assim como existe uma relação ativa entre dados internacionais e o cenário nacional. O pano de fundo sobre o qual a avalanche de fatos se apresenta configura um campo político e uma agenda em torno da dinâmica do poder. Não passamos impunemente por 12 anos de governos mais progressistas, mesmo com todos os limites e a falta de ousadia que os caracterizaram ao não enfrentar o poder do rentismo, a mídia das famílias e sua baixa capacidade hegemônica para construir uma coalizão vencedora para os temas da esquerda. Por um lado, persistiu o temor reverencial da mídia e das grandes forças conservadoras e, pelo outro, pelo discreto charme em estar a participar do banquete das elites, sem nunca ser efetivamente aceito por elas. Com tudo isso seguiu adiante, com inegáveis, mas ainda insuficientes, avanços.
Após doze anos, o campo conservador vem colecionando pequenas derrotas, que somadas já representam mudanças importantes. A estratégia incrementalista à centro-esquerda combatendo a pobreza e a miséria, um novo padrão nas relações internacionais, uma estratégia de investimento público se reconsolidando e a ampliação da capacidade estatal são elementos também desarticuladores do campo conservador. A melhora das condições de emprego e renda desafia a resiliente condição social de desigualdade antes perpetualizada, a qual, aliada aos programas sociais, vem mudando muitos aspectos da vida familiar e da sociedade em geral. Em uma palavra: reconfigura o eleitorado e os clientes das políticas estatais, desmonta parte da velha clientela do conservadorismo. É assim que partidos como o DEM se desmoralizaram e hoje quase nada representam por todo o País. Foi em nome disso que o PSB se expandiu nos últimos anos, atuando ao lado do PT no campo nacional (até a aventura Marina Silva) e com prefeituras bem avaliadas por vários estados. Nos segmentos urbanos do sudeste, a disputa PT/PSDB está configurada há algum tempo, assim como no RS. Em PR, SC, SP e MG havia vantagem pequena ao PSDB, o que também se repetia em GO e MT. No RJ, boa parte do norte/nordeste, RS de tempos em tempos, algumas localidades de SP e MG, a aliança em torno do PT, do PCdoB e parte do PMDB, foi mais forte.
Mas isto é o campo partidário. Conta uma pequena parte da história, mas fatos recentes estão a indicar mudanças importantes. A primeira é que a reconfiguração do eleitorado segue e a clientela recente e mais antiga do Estado legitima o programa que conduz o país a partir do ciclo petista. Por todos os estados formou-se uma sólida rede em defesa dos valores consagrados nos últimos doze anos, rede que abraçou a campanha de Dilma no segundo turno de 2014 de forma decisiva. Nem é necessário continuar nesta linha porque isto parece relativamente consensual mesmo para os adversários deste projeto. Para isso, basta acompanhar as declarações das lideranças ligadas ao PSDB/DEM/PPS e do PSB (agora adversário): “bolivarianos”, “comunização”, “mandato deslegitimado”, “perder ganhando”, claro, o “bovino eleitor” de Dilma. Há somente um problema: o “rebanho” obteve mais de 54 milhões de votos.
A derrota de Serra em 2010 foi um alerta muito poderoso para os conservadores. Ficava claro que não bastaria um nome antigo para enfrentar os oito anos de Lula. Ali houve um “ensaio geral” que rendeu frutos em 2014: uma convergência à direita inegável. Cito: o tema do aborto, dos homossexuais, o poder religioso, combinado com uma agenda liberal de reformas “estruturais”, abertura da economia, ortodoxia monetária. Falou-se para a parcela mais conservadora do eleitorado, ao mesmo tempo em que apelava ao tema das reformas para as elites econômicas. O resultado foi a vitória de Dilma por algo próximo de 6 pontos percentuais, portanto apenas ligeiramente maior que a do momento presente (perto de 4 pontos percentuais). As estratégias de mídia foram quase as mesmas: manchetes catastróficas, seletivas, omitindo resultados, caluniando e contribuindo para uma verdadeira farsa, como o hoje notório caso da “bolinha de papel” na cabeça de Serra.
A derrota mudou algo no campo conservador. O “ensaio geral” (antes um conjunto algo inarticulado, mas que exibia sinais de orientação em uma dada direção) revelou que havia um público para o discurso, para parte do nosso geist, deste nosso espírito do tempo. Uma classe média tradicional ressentida, parte de um novo público emergente que poderia sentir suas conquistas ameaçadas, as elites econômicas rentistas e com seus olhos voltados eternamente para o norte, parte do empresariado desejando concessões e os atores internacionais interessados na abertura (ainda mais?) do mercado doméstico e de riquezas como o pré-sal, a grande mídia e todas as viúvas do autoritarismo constituíam um público muito significativo, elementos de um caldo de cultura muito favorável a uma nova direita. Algo irritada com derrotas seguidas, buscou outro caminho. Alguns sinceramente desiludidos e nervosos com denúncias de corrupção, outros com o sucesso pelo menos parcial das novas ações econômicas e pelas orientações internacionais do petismo, somando-se à direita algo órfã, desembocaram na campanha acirrada e raivosa de segundo turno de 2014.
Não é o caso de uma conspiração, mas de uma convergência nos interesses. O que era inarticulado entre o primeiro e segundo períodos Lula, tornou-se um campo articulado de interesses no primeiro período Dilma. O papel deletério da imprensa se agravou e atingiu todos os limites do absurdo, ato que pode ser representado pela desesperada ação do veículo da família Civita faltando quatro dias para o segundo turno de 2014. Mas foi muito mais: anos de manchetes negativas, meias verdades, obras ocultadas, fabricação de fatos (havia até dólares cubanos e o retorno da doença do ex-presidente), o uso proverbial de adversativas e um colunismo raivoso e fundamentalista. Emergiram os porta-vozes do neoconservadorismo: do astrólogo “intelectual” Olavo de Carvalho ao ex músico Lobão; de limítrofes como Danilo Gentil e Raquel Sherazade até deseducados como Reinaldo Azevedo ou Augusto Nunes; outros simplesmente desprovidos de noção, como Merval ou Waack, isso sem contar o colunismo nas emissoras e jornais locais por todo o país, destacadamente em Minas, no Rio Grande do Sul ou Santa Catarina. A parte que cabia aos leitores de jornais e revistas era alimentada por estes porta-vozes; a parte televisiva pelos raivosos apresentadores ou por suaves leitores de notícias como Bonner. A cena jurídica revelou juízes midiáticos no STF e outros menos votados em níveis inferiores. No campo econômico a inflação ganhou contornos de catástrofe, ainda que esteja dentro de todas as metas traçadas pelos próprios mestres do universo; nossa competitividade um “desastre”; a crise internacional não existia – ou havia acabado, ninguém confiava em nós e nossos indicadores estariam no fim. O ambiente cinza e turvo se instalava, falando para o eleitor conservador que podia encontrar irmãos de sangue contra a desagregação familiar, a corrupção e a desordem promovida pela violência. No Brasil, a inflação tornava-se dogma e o governo uma “mentira”, pelo menos na cabeça de parte do eleitorado “cansado” e “contra tudo que estava ali”.
Há situações similares em outra parte do mundo. Cansados da “desagregação moral” e da ameaça do “esquerdismo”, irritados com casamentos entre pessoas do mesmo sexo e com aqueles que desafiavam o “mundo livre” e os valores cristãos, os neoconservadores se abraçaram aos defensores do livre mercado e da economia sem freios e regulações. Nos EUA é o tea party, em referência a um conhecido episódio anterior à independência do país. São os baluartes da moral e do individualismo possessivo, uma direita religiosa ou secular, raivosa e dominada pelo senso comum. No Brasil, o que antes era apenas raiva tornou-se ação sistemática antes, durante e após as eleições. Ela demarca o campo, afirma seus valores, ataca o resultado. Ela deseja minar a legitimidade do pleito e não dá tréguas. Como nos EUA tem seu braço midiático. Ela nasceu na “América” com o nome de “nova direita”, ainda sob o tristemente inesquecível Ronald Reagan, famoso por reduzir os impostos dos ricos, ampliar os gastos militares norte-americanos, e acelerar a desregulamentação econômica que ajudou a criar a crise de 2008 mais de 20 anos depois. Dormitou sobre o governo Clinton, cresceu com o limítrofe Busch Jr. e passou a odiar Obama com todas as forças. Um negro, de nome muçulmano e presidente? Só poderia ser “socialista”! “Um de nós, nunca”!
Não importa se este “socialismo” é fantasia, importa o discurso de ameaça – aqui e lá. Mas socialismo é muito vago para todos. Trata-se de apresentar exemplos mais claros: aqui, defender o
fim do estatuto do desarmamento, não aceitar casamento homoafetivo, rejeitar o aborto de qualquer forma, armar o cidadão “de bem”, demolir o inimigo, acabar com as terras indígenas, promover interesses de corporações midiáticas, reduzir a maioridade penal, demonizar o governo e o Estado “corruptos”. Isso não é fantasia ou conspiração: é ação política de direita.
Surpreendem aqueles que consideram que a dicotomia instalada na política brasileira seja meramente um acaso ou um arranjo inter-elites. Há espaço na esquerda para mais, mas a construção de uma coalizão maior será mais necessária, para além de partidos. Porque a dicotomia reflete algo mais simples: a direita brasileira foi abraçada pelo condomínio PSDB/DEM/PPS (na verdade só vale mesmo o PSDB) e franjas de outros partidos, do PMDB, PP, PR e outros. Por sobrevivência política. Mas isso é o campo partidário: na sociedade ele está em ex-roqueiros, em apresentadores, em entidades, em think thanks de gosto duvidoso, nos analistas econômicos de plantão (todos pensando a mesma coisa) e em organizações civis. É legítimo, é do jogo, pode até ser importante. Mas deve ser chamado pelo nome que tem: uma nova direita, o talibã nacional. Seu projeto pode se articular – já está se articulando – em uma coalizão de partidos a partir de variadas forças. Mas não pode pretender ter o monopólio do discurso nacional. Cabe ao PT e aos setores à esquerda demolir essa busca hegemônica, com mais força e sem aceitar as regras do jogo construídas pelas elites tradicionais e/ou mais recentes. Seu jogo é destrutivo e seu campo é midiático. De certa forma, estão à frente. Eles “perdem ganhando” – nada mais verdadeiro, como discurso, que esta fala de seu candidato, seu instrumento conjuntural, que atende pelo nome de Aécio Neves. O jogo, por hora, permanece aberto. Cabe às forças progressistas contrabalançá-lo, seja por uma estratégia mais agressiva ou até para constituir parte de um novo centro. A nova direita somente não pode discursar sozinha. As consequências são por demais terríveis.

Sobre fatos da conjuntura e a composição de um cenário para análise

O atual momento da vida política nacional exige cuidados. Ao contrário de todas as eleições presidenciais da redemocratização, esta tem sido a única na qual a oposição não aceita a derrota, como deveria ser pelas regras do jogo, e mantém uma interminável agenda de protestos, reclamações e pressões. Na semana da derrota, esta oposição mais o PMDB derrotaram o governo no Congresso sobre a agenda da participação social; toda a algaravia em torno da meta fiscal; tentativas contra as urnas eleitorais, levantando suspeição; a grande ocupação de uma dúzia de pessoas das galerias do Congresso patrocinadas pela direita retrógrada sob os auspícios do PSDB; as pressões pela realização de práticas econômicas derrotadas nas urnas; o tema do impedimento da Presidente que surge a cada segundo nos jornais e entre políticos. No Supremo Tribunal, o impoluto ministro Mendes (que parece ser sorteado para todos os processos referentes ao PT), continua sua escalada midiática oferecendo lições a quem desejar escutá-lo, sempre com críticas dirigidas ao PT.  Felizmente os demais Ministros parecem enfim entender uma regra básica, mesmo Marco Aurélio Mello: é preciso falar dentro dos processos, não para atender imediatos interesses da mídia ou da oposição. Nas ruas, quase nada, exceto os indignados da direita divididos entre os que defendem a intervenção militar e os que querem o impedimento da Presidente, todos os dois mil “cidadãos de bem” na avenida Paulista. Na mídia, o jornal o Globo vem revivendo seus melhores momentos em defesa da ruptura institucional. A diferença em relação ao passado? Sem pregar o retorno dos militares, defende o “golpe constitucional”, modelo consagrado no luminar democrático que é o Paraguai. Os demais veículos continuam insinuando a corrupção como o anátema nacional, ignorando todo o resto.
O mercado, por sua vez, vem pautando a agenda econômica do próprio governo. A Presidente eleita parece ter comprado o prato sem ler o cardápio. Explica-se: parece que ela escolheu a única opção que viu – a do mercado. Veio Joaquim Levy, o mercado suspirou feliz. Bastou Tombini não acenar com o aumento do fluxo de dólares de swapp cambial, no mesmo dia, e lá se foi o mercado bufando de raiva. O cenário internacional desfavorável entre novembro – as más notícias da China, da Europa, da queda no preço do barril de petróleo e até do afrouxar monetário do FED, aliados aos poucos negócios – produziu uma escalada do dólar e perdas na Bolsa. E a Petrobrás continua ladeira abaixo – para o mercado. O mercado gostou de Levy? Por que não desejaria mais?
Em uma combinação de estratégia de sangramento e deslegitimação da Presidente, a oposição vem patrocinado o crime de agravar a situação da Petrobrás. Nada que seja feito por dentro será suficiente. O cálculo político é associar a empresa ao PT e a Presidente, esquecendo todo o passado. Isto está a produzir reflexos no mercado. O caso em pauta na Justiça Federal é uma peneira: a imprensa acompanha tudo em tempo real, os acusados não tem acesso ao processo. O quadro de instabilidade econômica se agrava sem que os agentes tenham a dimensão real do problema. A não divulgação do balanço, pela recusa da auditoria externa em assiná-lo sem conhecer as reais dimensões da sangria (promovida pelo bando que assalta a companhia desde o governo Sarney), não ajuda em nada o cenário. A combinação de um cenário externo ruim com as dúvidas internas sobre a operação lava-jato estão sangrando a maior empresa nacional.
Aqui voltamos sempre ao tema – grifemos: a corrupção é e continua a ser intolerável, todos os desvios devem ser punidos e a quadrilha encarcerada. A participação de agentes privados e a corrupção patrocinada pelo setor privado encontra parte da burocracia das empresas com disposição para a rapinagem; burocracia de nomeação externa como parte dos acordos da “coalizão” de momento, ainda que alguns permaneçam pulando de cargo em cargo sem nada entender de petróleo. Esses agentes públicos não são partidários, a não ser deles mesmos. Eles se movimentam como intermediários para acumular recursos e operar em financiamento de campanhas com a conivência do setor privado. O esquema de financiamento de campanhas por este segmento é uma fonte reconhecida de corrupção. Portanto, quem quer realmente acabar com isso? O impoluto ministro Mendes tranca, com um pedido de vistas, uma ação proibindo o uso de recursos de empresas em campanhas eleitorais. Por que ele não devolve o processo e permite aos seus colegas decidir a ação? Ou então porque os agentes políticos não discutem a sério a reforma política definindo recursos aos partidos oriundos do orçamento e, ao mesmo tempo, limitados? Não custa tão caro assim, desde que o formato das campanhas obedeça aos critérios de informar o eleitor sobre suas opções. As empresas irão continuar tentando ofertar recursos na forma de caixa 2? Caixa 2 torna-se crime, assim como qualquer sonegação deveria ser punida com perda de patrimônio em processos sumários. O mesmo deveria valer para crimes como a formação de quadrilha. Não dará certo? Mas, não seria interessante experimentar?
Estamos diante de um cenário onde o desejo de mudar é latente, eventualmente manifesto, mas o sistema político, o legislativo e o judiciário produzem travas poderosas. Alguns exemplos poderosos de travas políticas: parlamentares votam seu próprio salário, são beneficiários de doações privadas, desejam permanecer indicando diretores de estatais, operam interesses de grupos (e pouco dos partidos). De travas jurídicas: pedidos de vista sem prazo definido, Primeira Instância federal como fonte de vazamento seletivos de informações sobre processos; encantamento com a mídia de juízes e promotores; processos morosos e até sobrecarga de trabalho. Mas, mudar de verdade significaria mudar as travas do mercado, da economia conforme o mercado entende economia: uma consecução de decisões privadas constituindo um mercado auto-regulável, sendo o Estado o garantidor da ordem e dos contratos. Somente isso? Nos sonhos dos economistas de mercado, sim.
O que seria mudar de verdade nesse campo? Muito, mas podemos apresentar o debate em termos de duas, apenas como exemplos: primeiro, seria preciso descolonizar a política da agenda econômica, que a política assumisse o protagonismo da mudança. Segundo, pensar medidas concretas na seara tributária: imposto sobre grandes fortunas, mudanças nas alíquotas de imposto de renda para mais alíquotas e tributação progressiva; impostos sobre herança, tornar a sonegação fiscal passível de  punições realmente severas; reduzir a tributação sobre consumo e enfrentar a questão do imposto sobre valor agregado. Vamos discutir isso? O constituinte definiu uma série de obrigações ao Estado, de saúde e educação universais aos direitos sociais. Não seria hora deste debate? Não para a agenda política, nunca para a econômica. A coalizão de governo a surgir não dará conta de enfrentar esta agenda necessária. A estratégia da oposição é prender o governo na agenda comezinha da “corrupção” (da qual ela, candidamente, diz nunca ter participado) e da “crise”. Enquanto isso, nada muda, o que atende aos interesses imediatos do mercado e da oposição, que não desejam, na verdade, mudar nada, preferem o jogo jogado.
Estes são alguns fatos e este é o cenário.  A relação mercado/Estado, o jogo governo e oposição, os três poderes, a movimentação da sociedade e as relações internacionais (políticas e econômicas – sim, elas também) precisam se reunidos em um todo mais compreensivo, para ultrapassar a superfície da conjuntura. Mas isso precisará ser deixado para outra (ou outras) postagem (ns).