domingo, 8 de fevereiro de 2015

Som e fúria – a conjuntura e a nova direita

A conjuntura muitas vezes parece desconexa. Fatos isolados ou com aparência de pouca conectividade se manifestam, o que não significa que não gozem de uma conexão mais profunda. Fatos econômicos refletem um padrão na relação Estado/mercado; governo/oposição ou ações aparentemente isoladas de parlamentares indicam o jogo político e de concepções; movimentos sociais e suas concepções e as ações cotidianas da mídia não estão isolados, assim como existe uma relação ativa entre dados internacionais e o cenário nacional. O pano de fundo sobre o qual a avalanche de fatos se apresenta configura um campo político e uma agenda em torno da dinâmica do poder. Não passamos impunemente por 12 anos de governos mais progressistas, mesmo com todos os limites e a falta de ousadia que os caracterizaram ao não enfrentar o poder do rentismo, a mídia das famílias e sua baixa capacidade hegemônica para construir uma coalizão vencedora para os temas da esquerda. Por um lado, persistiu o temor reverencial da mídia e das grandes forças conservadoras e, pelo outro, pelo discreto charme em estar a participar do banquete das elites, sem nunca ser efetivamente aceito por elas. Com tudo isso seguiu adiante, com inegáveis, mas ainda insuficientes, avanços.
Após doze anos, o campo conservador vem colecionando pequenas derrotas, que somadas já representam mudanças importantes. A estratégia incrementalista à centro-esquerda combatendo a pobreza e a miséria, um novo padrão nas relações internacionais, uma estratégia de investimento público se reconsolidando e a ampliação da capacidade estatal são elementos também desarticuladores do campo conservador. A melhora das condições de emprego e renda desafia a resiliente condição social de desigualdade antes perpetualizada, a qual, aliada aos programas sociais, vem mudando muitos aspectos da vida familiar e da sociedade em geral. Em uma palavra: reconfigura o eleitorado e os clientes das políticas estatais, desmonta parte da velha clientela do conservadorismo. É assim que partidos como o DEM se desmoralizaram e hoje quase nada representam por todo o País. Foi em nome disso que o PSB se expandiu nos últimos anos, atuando ao lado do PT no campo nacional (até a aventura Marina Silva) e com prefeituras bem avaliadas por vários estados. Nos segmentos urbanos do sudeste, a disputa PT/PSDB está configurada há algum tempo, assim como no RS. Em PR, SC, SP e MG havia vantagem pequena ao PSDB, o que também se repetia em GO e MT. No RJ, boa parte do norte/nordeste, RS de tempos em tempos, algumas localidades de SP e MG, a aliança em torno do PT, do PCdoB e parte do PMDB, foi mais forte.
Mas isto é o campo partidário. Conta uma pequena parte da história, mas fatos recentes estão a indicar mudanças importantes. A primeira é que a reconfiguração do eleitorado segue e a clientela recente e mais antiga do Estado legitima o programa que conduz o país a partir do ciclo petista. Por todos os estados formou-se uma sólida rede em defesa dos valores consagrados nos últimos doze anos, rede que abraçou a campanha de Dilma no segundo turno de 2014 de forma decisiva. Nem é necessário continuar nesta linha porque isto parece relativamente consensual mesmo para os adversários deste projeto. Para isso, basta acompanhar as declarações das lideranças ligadas ao PSDB/DEM/PPS e do PSB (agora adversário): “bolivarianos”, “comunização”, “mandato deslegitimado”, “perder ganhando”, claro, o “bovino eleitor” de Dilma. Há somente um problema: o “rebanho” obteve mais de 54 milhões de votos.
A derrota de Serra em 2010 foi um alerta muito poderoso para os conservadores. Ficava claro que não bastaria um nome antigo para enfrentar os oito anos de Lula. Ali houve um “ensaio geral” que rendeu frutos em 2014: uma convergência à direita inegável. Cito: o tema do aborto, dos homossexuais, o poder religioso, combinado com uma agenda liberal de reformas “estruturais”, abertura da economia, ortodoxia monetária. Falou-se para a parcela mais conservadora do eleitorado, ao mesmo tempo em que apelava ao tema das reformas para as elites econômicas. O resultado foi a vitória de Dilma por algo próximo de 6 pontos percentuais, portanto apenas ligeiramente maior que a do momento presente (perto de 4 pontos percentuais). As estratégias de mídia foram quase as mesmas: manchetes catastróficas, seletivas, omitindo resultados, caluniando e contribuindo para uma verdadeira farsa, como o hoje notório caso da “bolinha de papel” na cabeça de Serra.
A derrota mudou algo no campo conservador. O “ensaio geral” (antes um conjunto algo inarticulado, mas que exibia sinais de orientação em uma dada direção) revelou que havia um público para o discurso, para parte do nosso geist, deste nosso espírito do tempo. Uma classe média tradicional ressentida, parte de um novo público emergente que poderia sentir suas conquistas ameaçadas, as elites econômicas rentistas e com seus olhos voltados eternamente para o norte, parte do empresariado desejando concessões e os atores internacionais interessados na abertura (ainda mais?) do mercado doméstico e de riquezas como o pré-sal, a grande mídia e todas as viúvas do autoritarismo constituíam um público muito significativo, elementos de um caldo de cultura muito favorável a uma nova direita. Algo irritada com derrotas seguidas, buscou outro caminho. Alguns sinceramente desiludidos e nervosos com denúncias de corrupção, outros com o sucesso pelo menos parcial das novas ações econômicas e pelas orientações internacionais do petismo, somando-se à direita algo órfã, desembocaram na campanha acirrada e raivosa de segundo turno de 2014.
Não é o caso de uma conspiração, mas de uma convergência nos interesses. O que era inarticulado entre o primeiro e segundo períodos Lula, tornou-se um campo articulado de interesses no primeiro período Dilma. O papel deletério da imprensa se agravou e atingiu todos os limites do absurdo, ato que pode ser representado pela desesperada ação do veículo da família Civita faltando quatro dias para o segundo turno de 2014. Mas foi muito mais: anos de manchetes negativas, meias verdades, obras ocultadas, fabricação de fatos (havia até dólares cubanos e o retorno da doença do ex-presidente), o uso proverbial de adversativas e um colunismo raivoso e fundamentalista. Emergiram os porta-vozes do neoconservadorismo: do astrólogo “intelectual” Olavo de Carvalho ao ex músico Lobão; de limítrofes como Danilo Gentil e Raquel Sherazade até deseducados como Reinaldo Azevedo ou Augusto Nunes; outros simplesmente desprovidos de noção, como Merval ou Waack, isso sem contar o colunismo nas emissoras e jornais locais por todo o país, destacadamente em Minas, no Rio Grande do Sul ou Santa Catarina. A parte que cabia aos leitores de jornais e revistas era alimentada por estes porta-vozes; a parte televisiva pelos raivosos apresentadores ou por suaves leitores de notícias como Bonner. A cena jurídica revelou juízes midiáticos no STF e outros menos votados em níveis inferiores. No campo econômico a inflação ganhou contornos de catástrofe, ainda que esteja dentro de todas as metas traçadas pelos próprios mestres do universo; nossa competitividade um “desastre”; a crise internacional não existia – ou havia acabado, ninguém confiava em nós e nossos indicadores estariam no fim. O ambiente cinza e turvo se instalava, falando para o eleitor conservador que podia encontrar irmãos de sangue contra a desagregação familiar, a corrupção e a desordem promovida pela violência. No Brasil, a inflação tornava-se dogma e o governo uma “mentira”, pelo menos na cabeça de parte do eleitorado “cansado” e “contra tudo que estava ali”.
Há situações similares em outra parte do mundo. Cansados da “desagregação moral” e da ameaça do “esquerdismo”, irritados com casamentos entre pessoas do mesmo sexo e com aqueles que desafiavam o “mundo livre” e os valores cristãos, os neoconservadores se abraçaram aos defensores do livre mercado e da economia sem freios e regulações. Nos EUA é o tea party, em referência a um conhecido episódio anterior à independência do país. São os baluartes da moral e do individualismo possessivo, uma direita religiosa ou secular, raivosa e dominada pelo senso comum. No Brasil, o que antes era apenas raiva tornou-se ação sistemática antes, durante e após as eleições. Ela demarca o campo, afirma seus valores, ataca o resultado. Ela deseja minar a legitimidade do pleito e não dá tréguas. Como nos EUA tem seu braço midiático. Ela nasceu na “América” com o nome de “nova direita”, ainda sob o tristemente inesquecível Ronald Reagan, famoso por reduzir os impostos dos ricos, ampliar os gastos militares norte-americanos, e acelerar a desregulamentação econômica que ajudou a criar a crise de 2008 mais de 20 anos depois. Dormitou sobre o governo Clinton, cresceu com o limítrofe Busch Jr. e passou a odiar Obama com todas as forças. Um negro, de nome muçulmano e presidente? Só poderia ser “socialista”! “Um de nós, nunca”!
Não importa se este “socialismo” é fantasia, importa o discurso de ameaça – aqui e lá. Mas socialismo é muito vago para todos. Trata-se de apresentar exemplos mais claros: aqui, defender o
fim do estatuto do desarmamento, não aceitar casamento homoafetivo, rejeitar o aborto de qualquer forma, armar o cidadão “de bem”, demolir o inimigo, acabar com as terras indígenas, promover interesses de corporações midiáticas, reduzir a maioridade penal, demonizar o governo e o Estado “corruptos”. Isso não é fantasia ou conspiração: é ação política de direita.
Surpreendem aqueles que consideram que a dicotomia instalada na política brasileira seja meramente um acaso ou um arranjo inter-elites. Há espaço na esquerda para mais, mas a construção de uma coalizão maior será mais necessária, para além de partidos. Porque a dicotomia reflete algo mais simples: a direita brasileira foi abraçada pelo condomínio PSDB/DEM/PPS (na verdade só vale mesmo o PSDB) e franjas de outros partidos, do PMDB, PP, PR e outros. Por sobrevivência política. Mas isso é o campo partidário: na sociedade ele está em ex-roqueiros, em apresentadores, em entidades, em think thanks de gosto duvidoso, nos analistas econômicos de plantão (todos pensando a mesma coisa) e em organizações civis. É legítimo, é do jogo, pode até ser importante. Mas deve ser chamado pelo nome que tem: uma nova direita, o talibã nacional. Seu projeto pode se articular – já está se articulando – em uma coalizão de partidos a partir de variadas forças. Mas não pode pretender ter o monopólio do discurso nacional. Cabe ao PT e aos setores à esquerda demolir essa busca hegemônica, com mais força e sem aceitar as regras do jogo construídas pelas elites tradicionais e/ou mais recentes. Seu jogo é destrutivo e seu campo é midiático. De certa forma, estão à frente. Eles “perdem ganhando” – nada mais verdadeiro, como discurso, que esta fala de seu candidato, seu instrumento conjuntural, que atende pelo nome de Aécio Neves. O jogo, por hora, permanece aberto. Cabe às forças progressistas contrabalançá-lo, seja por uma estratégia mais agressiva ou até para constituir parte de um novo centro. A nova direita somente não pode discursar sozinha. As consequências são por demais terríveis.

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