quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Entre o fato e a ficção - reflexões sobre fatos recentes envolvendo a grande imprensa nacional

"Como eles ousaram, eu igualmente ouso. atrevo-me a dizer a verdade, uma vez que os canais normais da justiça não o fazem. Meu dever é falar, não quero ser cúmplice desta farsa. De outra forma, minhas noites seriam assombradas pelo fantasma de um inocente a expiar, na mais terrível tortura, um crime que ele não cometeu"
Émile Zola - J'accuse 


Há páginas que uma vez escritas ganham a dimensão épica da indignação. O mais famoso manifesto anti-fraude do século XIX é a célebre manifestação de Émile Zola em defesa do Capitão Alfred Dreyfus, falsamente acusado com provas fraudulentas (a acusação chave era por espionagem para os alemães) e duas vezes condenado antes que fosse finalmente inocentado quando da descoberta do verdadeiro culpado. Ao ser afastado do exército, Dreyfus foi parte de uma cerimônia de execração, quebrando sua espada de oficial da artilharia e depois conduzido para a prisão na Ilha do Diabo. O caso foi ruidoso inclusive porque provas de inocência foram ocultadas, agravando ainda mais o fato, e pelo papel da imprensa repercutindo amplamente o caso, seja na ausência de prova contundente, seja não fazendo eco sobre novas investigações. Foi preciso que vários intelectuais, imbuídos de notável senso de responsabilidade pública, ganhassem estatura ainda maior, caso de Zola ou Anatole France. Foi o primeiro quem produziu a notável carta (ao presidente francês Felix Faure) intitulada J 'accuse.
O regime democrático é pródigo de dois elementos, entre outros, muito peculiares. O primeiro é a amplidão do espaço para livre expressão - de crença, ideologia, opinião - base da construção da vida pública e do exercício dos direitos. A outra é a própria dificuldade de sua operação: uma democracia exige a paciência de seus atores, seja pelo contraditório, pela diferença, pela necessidade de negociação, pela lenta maturação, pelo debate. Não é a melhor forma para obter resultados expeditos, mas é exatamente nela onde estão as melhores oportunidades para a fruição dos desejos e oportunidades dos indivíduos e das organizações.
No exercício da vida cotidiana em um regime democrático o direito a informação tem na imprensa um elemento central. Ela representa a possibilidade em permitir o fluxo de informações cotidianas em direção ao "leitor-cidadão", assim contribuindo para constituir a formação de uma "opinião pública". Não por acaso, França, Inglaterra e depois os Estados Unidos são casos exemplares da relação imprensa/opinião pública. Há muitas formas para produzir este efeito e podemos citar duas situações relevantes: a ampliação da escolarização (com a maior capacidade em interpretar informações) e uma possibilidade aberta ao público para a constituição e análise de "fatos" aparentemente concretos, mas que podem produzir outras interpretações. Em linguagem de redação há "um outro lado", mas também existe a possibilidade do erro (deliberado ou não) na divulgação e interpretação dos fatos. Bons veículos reconhecem quando erram ou divulgam inverdades, mas o que acontece quando se persegue um "fato" (supostamente concreto) e segue-se produzindo fatos que (forçosamente) possam confirmar o "fato inicial"? E se o fato inicial não puder ser comprovado exceto por evidências frouxas, "opinião" e moralidade duvidosa?
Ou pior, com a lógica que presidia regimes de exceção como o stalinismo: a melhor prova é que não existe prova. Por que? Porque se ela não existe o culpado a escondeu e porque escondeu ... é culpado. E, mais grave, se ele estiver em posicão de "força e influência" é ainda mais culpado, exatamente porque usou desta influência para ocultar provas.
Este exercício vem sendo alimentado com ares de notório saber jurídico. Não sendo jurista, resta-me apenas esgrimir argumentos. Ao contrário de alguns jornalistas de grandes órgãos de comunicação escrita e televisionada, nunca me passou pela cabeça tentar "julgar" e  "apenar", menos ainda esgrimir teses obscuras para justificar falta de provas objetivas. A preocupaçao aqui expressa é o comportamento da imprensa, particularmente um semanário de qualidade ruim e sempre na berlinda e algo como uns três jornais (e alguns satélites estaduais em Belo Horizonte, Porto Alegre ou Brasília) que opinam, discutem, constroem manchetes e não informam sobre fatos, mas sobre opiniões dos chefes de redação, dos proprietários dos veículos e de jornalistas ávidos (com todas as óbvias exceções) em ajudar nesta cruzada.
A imprensa brasileira desgosta lembrar-se das suas parlapatices. Antes as ignora. Recordar é viver: Escola Base de São Paulo, acusação indigna contra Ibsen Pinheiro, cassação sem provas de Alceni Guerra, dinheiro cubano em um avião para a campanha de Lula (alguém acreditou neste diatribe? Dólares cubanos???).  A lista pode aumentar, mas há alguns "personagens" de imprensa sempre presentes. O tal semanário de péssima qualidade é frequente na lista do não reconhecimento de erros e na insistência do "fato"que sempre precisa de muitos "fatos" para comprovar o primeiro e que vão sendo produzidos semana a semana. 
O ultimo, na esteira deste triste processo que se desenrola no STF , é uma entrevista que o tal semanário insiste que é real, ofertada por "parentes e amigos" de Marcos Valério. "Parentes e amigos"? Que fonte extraordinária. Por que o áudio não está divulgado no sítio do tal semanário? Alguém ouviu? Onde estão as fontes? Claro, preservadas no anonimato. Mas existem documentos? Onde estão? Podem ir para o mesmo sítio, ou talvez para o Google Docs. Há também a inefável figura do Inspetor-Geral (que Gogol nos perdoe), homem que produziu uma formidável peça de acusação onde faltam provas mas restam adjetivos, que rapidamente diz ser necessário apurar a responsabilidade do ex- presidente Lula; sempre ele. O mesmo ex-presidente que não foi incluído no processo original. E investigado com base em um áudio que não é apresentado e declarações de redação de uma revista com o histórico de "dólares cubanos"? Senhor inspetor: a tal imprensa, ainda que timidamente, não disse que existiu outro "mensalão" em Minas? Que tal uma peça para julgá-lo? Existe algum processo de compra de votos sobre a reeleição de um outro ex-presidente? Não houve nenhuma denúncia? Foi arquivada?
Ano eleitoral é um ano de guerra. O ex-presidente Lula sai do cargo com aprovação recorde (ao contrário do que o antecedeu) e é um eleitor reconhecidamente influente. Ele insiste em apoiar candidatos que saem atrás e gosta de ver suas curvas de crescimento. Obviamente que não é somente o ex-presidente, afinal candidatos também tem performances que podem influir no resultado. Mas Patrus e Haddad não podem prescindir de Lula, bem como ele é importante para candidatos do PT em cidades relevantes Brasil afora. Pior: Lula pode desejar retornar e concorrer a presidência em 2018. Que horror! De novo este metalúrgico? Imbuídos do típico preconceito de classe, alguns críticos (lamentavelmente paulistas, me desculpem meus amigos de São Paulo que não merecem esta elite política atrasada e racista) chamam-no de "molusco" (afinal nominá-lo nordestino seria forte demais!), leitores vorazes de um lamentável escrevinhador de chapéu panamá, ex-editor de revista ligada ao PSDB (a publicação "quebrou" sem apoio oficial do seu partido após o fim do ciclo tucano),  sendo hoje colunista do tal semanário ("veja" bem) de baixa qualidade que vê apenas o Brasil caminhando ao abismo. 
Os conservadores perderam as três últimas eleições. Perdoem-me os colegas do PSDB, mas conservadores sim. Não como xingamento, isto seria uma estupidez. Conservadores porque não enxergam avanços, porque confundem ação pública com intervenção descabida, reforco do Estado com "aparelhamento" e política social com oportunismo. Se erros ocorrem, acertos não? Preferem o caminho do ranger de dentes udenista à reformulação de seu programa e de sua ação. Até golpe de estado travestido de processo relâmpago no Paraguai ganha defesa de alguns desses senhores.
Que tal permitirmos que as eleições tenham somente dois turnos?  Sim, porque parece que estamos no quarto ou quinto turno contra Lula e no terceiro contra Dilma. Poderia a imprensa indubitavelmente livre (para produzir fatos, debater ficção e gravar entrevista sem áudio .. ah, e também para divulgar notícias) fazer um grande favor a República e realizar seu papel, denunciar (desde que com fundamentos, por favor) e apurar (com a mesma recomendação), mas parar de tentar interferir no processo democrático de escolha construindo ilações contra ex-presidente, atual presidente e operar com "notável" saber jurídico? Que tal divulgar dados econômicos dando igual destaque a problemas e bons resultados? Indicar a fonte dos relatórios que cita e parar de enviar eleitores e telespectadores ao seu sítio internet em lugar de oferecer o endereço onde as informações realmente estão? Muito importante: admitir quando erra. Jornais e revistas no Brasil tem poucos leitores. Há que se lamentar isso? No quadro atual de desinformação e guerra de informações enviesadas não há vantagem em ler esses produtos do mercado midiático. Que tal ler ao longo da internet? Ou dedicar-se aos bons livros? Ou buscar informações fora da grande imprensa? Ler sempre ... Estudar. Para escapar das armadilhas da informação pela metade.
Sugiro aos meus poucos leitores um exercício: passar 14 dias examinando três jornais de circulação nacional (dois paulistanos e um carioca) e o tal semanário de capa frequentemente vermelha e bombas de ocasião (aquele da entrevista sem áudio). Anotem as manchetes de primeira página: se 75% não representar críticas ao governo central ou dados negativos sobre economia seria ótimo jantar com o ex-presidente Cardoso em um restaurante nos Jardins para falarmos de sociologia, das  alterações no tecido social brasileiro, nos deslocamentos de classe, nas oportunidades de crédito, nas práticas anticíclicas, na política externa brasileira e na sua relação com a "Terceira Via". Poderemos conduzir a conversa em português e inglês para sua excelência ficar a vontade. Dizem que Cardoso é um interlocutor inteligente e espirituoso. Acredito. Mesmo assim não gosto dos seus dois mandatos.
Claro que a imprensa pode acertar, claro que existem notícias não ficcionais e reflexões relevantes. Mas o problema é que o espetáculo feérico produz mais lixo midiático que reflexão consequente. Mais entrevista sem áudio que interlocução de qualidade. Tem chefe de sucursal como amigo (e receptor de "notícias") de preso aguardando julgamento. Mais divulgação de um parágrafo crítico em um relatório do IPEA que do documento como um todo de dados positivos. Uma noção onde endividamento familiar iguala gasto com Channel n.5 e dívida para aquisição da casa própria, onde inadimplência de 5,9% ante um crescimento de crédito de 65% é uma "catástrofe" perigosa e o repique do preço do tomate é uma senha para a disparada do ohhhhhh, aquele monstro da inflação. 
Este é também o ano da eleição para presidente dos EUA. Lá o semanário de capa frequentemente vermelha seria um panfleto republicano de quinta categoria do interior de Utah. Olhando para os ingleses, este semanário, em outro delírio, pode acreditar ser uma versão tupiniquim de "The Economist", bíblia liberal conservadora. Mas antes precisa: 1) de melhores jornalistas; 2) de chefia de redação intelectualmente mais capaz; 3) de editoriais reconhecendo seu lugar no espectro ideológico e 4) de responsabilidade jornalística. Não há problema algum em ser conservador ou liberal, há problema quando mergulha-se no pântano do caráter duvidoso.
Creio que precisamos de Zola. Precisamos atualizar J'accuse. Ontem como hoje há a construção de um edifício de mentiras e verdades intermediárias, de atores que participam do jogo produzindo peças de acusação e ignorando as peças de defesa,  que tomam o "fato" sem prova pelo fato em si. Por que tudo isso? Porque há outras forças no jogo. Há uma opinião diversa do centro de boatos e "fatos", há atores organizados para além da agenda conservadora, há mudanças tectônicas em ação. Na França de Zola era a combinação do anti-semitismo com a agenda da direita monarquista; aqui, hoje, o mix de conservadorismo elitista e racista com moralismo de catecismo. Se existe crime, que se prove, processe e prenda. Mas é preciso compreender quem joga, como e porque e também acusar o papel desempenhado por uma horda furiosa de produtores de "fatos", de entrevistas sem áudio, da divulgação de um inferno cuja temperatura parece sempre aumentar mesmo que esta diminua e as nuvens deixem entrar rasgos de sol. Estamos muito longe do que queremos, claro que temos problemas, mas começamos de algum lugar. Não reconhecer isso é a combinação de preconceito, ação ideológica e fatos "fabricados". É preciso acusar quem se serve desses artifícios. O exercício do conhecimento in medio virtus, não nos extremos do espectro. É hora da imprensa exercitar um pouco do caminho do meio. Mas será que seus interesses permitirão isso? No quadro atual, lamentavelmente, não.

6 comentários:

  1. É caro Condé, você é mais ponderado que eu, mas mesmo assim, um artigo com essa qualidade jamais encontraria uma única publicação na grande imprensa. Ao contrário, com cada vez menos portavozes, o PIG se compraz com qualquer coisa que se dedique a vociferar contra Lula e o PT. Agora imagine se ele realmente tivesse tentado mudar as estruturas desse país...

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  2. Olá Gustavo. Obrigado por sua manifestação. Sabe que o exercício de leitura da imprensa é uma tortura cotidiana, não? Mas sabe i que acho mais lamentável? O fato da posição ideológica, ou dizendo de outra maneira, as preferências partidárias ou filosóficas nunca são explicitadas claramente. Há jornais que gostam de "neutralidade"mesmo que suas páginas digam contrário; semanário que cria fatos mas nunca apoia um único candidato no editorial e TVs que produzem qualidade técnica e conteúdo indigente. E vc tem razão: o governo é complacente e condescendente com a mídia. Por muito menos Barack Obama disse para quem quisesse ouvir que a Fox News era um partido. Aqui tudo vale em nome da imprensa livre... Às vezes apanhar tem feito bem a alguém em Brasília.

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  3. Condé, ontem em minha aula dei um exemplo que vai na direção do seu texto-desabafo. Disse que a revista veja é diametralmente proporcional ao PCO no espectro político-ideológico: um na extrema esquerda, outro na extrema direita. Com a ressalva de que o PCO só nos assola de 2 em dois anos e a cada dez segundos nos horários políticos gratuitos, ao passo que não há sequer um consultório de dentista sem um exemplar de veja.

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  4. Dmitri, como vai? O caso da tal revista Veja é verdadeiramente um "case", passível de análise em sociologia da comunicação por sua trajetória. Fundada por Mino Carta, teve papel também importante nas "diretas" e no impeachment. Em algum momento no início da década de 90 realizou uma virada ideológica. Talvez Mino tenha sua explicação para a filha renegada, mas desconfio que isto tem relação com um nicho de oportunidade conservador, combinando um semanário de tiragem razoável para o Brasil com um conservadorismo político e um credo liberal. Mas, o pior é que, pelo menos nos últimos dez anos, toda a qualidade jornalística e o pudor desapareceram. Como disse, não há problema em seu lado do espectro, a questão é a falta de compromisso com a verdade, ou minimamente com a investigação responsável. Como paródia, poderia ser mesmo um semanário americano de Utah, bastando colorir-se da defesa anti-aborto e do milenarismo religioso. Mas ela ainda não é isso. Na verdade, ela mais parece uma publicação dos republicanos da Califórnia irritados com o Estado e desafiando Nova York. O problema é que a falta de caráter jornalistico afeta sua credibilidade e, do ponto de vista político, ela não assume posiçao de apoio aos candidatos conservadores. É a fox news envergonhada. A comparação com o PCO (e o PSTU ou o PCB) não é nada descabida, até porque esta modalidade a esquerda também nada investiga ou apura - acusa. E não no sentido de Zola ...

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  5. Condé, essa guinada ocorreu também com a Folha de São Paulo, só que nem tanto quanto a Veja. A Folha era um jornaleco de esquina que participava da OBAN. Depois, entrou na onda da da defesa da abertura quando tudo já estava mais "pacificado", angariou legitimidade junto à intelectualidade e, na década de 1990, abraçou o neoliberalismo como cartilha. Talvez ela se pareça mais com os jornais republicanos, dado que a Veja não se parece com nada: alguns dos órgãos republicanos costumam defender com certa seriedade seus pontos de vista; já a veja, a gente sabe o que é: a excrescência mentirosa de uma direita brasileira que jamais conseguiu legitimar em termos lógicos sua própria existência.

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  6. Quase nada a acrescer . Apenas o fato de que a folha crescera na esteira das diretas. E dai para o neoliberalismo freqüentemente envergonhado.

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