quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Festa no purgatório entre liberais e socialistas - um relato farsesco do banquete intelectual

Houve uma festa no purgatório. De  lado direito da rua a decoração lembrava a soberania do indivíduo, consagrada em textos legais e celebrada na literatura, cantada e decantada por vozes fortes como Constant ou Stuart Mill, Mandeville ou Smith, Spencer ou Pareto e, com maior favor por menor originalidade, Hayek ou Fridman. E há o surpreendente encontro entre o anarquismo a esquerda, uma "planta exótica" do século XIX com o neoliberalismo de Nozik, a celebração exótica do estado mínimo.  A reunião desses fantasmas obriga o fraque como traje: Spencer acresceria as polainas e a cartola, Mandevile e Smith o completam com longas perucas brancas e o anarquista, sentindo-se um tanto desconfortável nesta companhia, surgiria em trajes rotos, para ressaltar sua diferença. Quesnay e Turgot continuam lamentando o fracasso reformista, que para eles era a causa de todo o terror socialista posterior. Corria em sussurros que Keynes teria sido convidado, mas declinara porque estava se sentindo muitíssimo enjoado com tudo que estava acontecendo e teria preferido ler poesia junto a Virginia Woolf.
Havia convidados recentes, vindos da Áustria, em longas carruagens: Von Mises liderava uma comitiva e chegou abraçando-se a Hayek. Ambos debatiam com Popper como fazer que os obtusos líderes liberais da Europa compreendessem que era preciso um recuo tático para salvar bancos, propriedades e a iniciativa privada. Dos Estados Unidos vinha a maior delegação, com a Economia da Universidade de Chicago a frente, mas secundada pelo MIT e Harvard. Traziam uma imensa placa de ouro para ser entregue aos austríacos e incentivavam com aplausos tímidos o encontro entre Reagan e Yeltsin, o único russo presente. Margareth Thatcher ainda permanece viva, não poderia saber da festa. 
Também encontravam-se ali banqueiros suiços sem nome (evidentemente) e grandes nomes da iniciativa privada: Carnegie, Rockefeller, Morgan, Schindler, Bosch, Krupp, Rothschild e outros discutiam a recente crise com alguns olhares odiosos aos banqueiros. Mas, todos estariam prontos e alertas para ouvir o grande discurso da noite: David Ricardo faria uma apreciação da economia nos últimos quinhentos anos. Perguntado sobre isso, ele respondeu: "é simples: indivíduo, propriedade e liberdade. O resto é conversa, teorias exotéricas e ilusões holísticas".
Do  lado esquerdo da rua estava reunido outro clube. Seu lema envolvia a defesa de projetos coletivos, proteção social e o gosto pelas classes e seus conflitos. Mas tudo segundo diferentes medidas. Marx era o anfitrião, mas estaria devendo o aluguel do salão. Engels ainda não teria chegado, preocupado que estava em impedir que o genro de Marx, Paul Lafargue, se aproximasse da festa, uma vez que o líder do socialismo tinha notória má vontade com o rapaz, que o venerava. Mas lá dentro estaria reunida a fina flor da esquerda: o próprio anfitrião, desfilando orgulhoso com o chateau lafite dos Rothschild, Kaustsky com sua longa barba entabulando debates com Rosa Luxemburgo e Bernstein sobre a situação politica alemã (claro que todos considerariam Angela Merkel um lixo, ainda que Bernestein frequentasse eventualmente os mesmos locais que ela), Plekanov sentava-se a um canto escuro e Lênin gargalhava explicando como os seus defensores vivos não tinham entendido nada, no que era acompanhado por Trotsky que trazia consigo um exemplar de Thomas Mann. Stalin permanecia na cozinha ajudando a preparar o jantar, o que era motivo de desconfiança em todos os russos presentes. Havia convidados mais recentes: conversavam em uma animada roda de "reformistas" figuras díspares; Olaf Palme, Enrico Berlinguer, Palmiro Togliati, Helmut Schmidt, George Marchais, o elegante Jacques Delors (que achava, como Schmidt, que o convite havia sido enviado por engano) e um italiano  desgrenhado que olhava para os lados com frequência. Em um momento, Lênin gritou seu nome após um gole de vodka: "Gramsci, venha cá com os bons". Marx o fuzilou com os olhos do outro lado e prometeu a si mesmo que falaria com esse russo sobre modos. O anarquista que estava do outro lado da rua decidiu entrar e ver a festa. Sua aparição provocou um grande alarido no salão lotado e o cidadão teve uma cadeira colocada longe de Marx, que tolerava sua presença mas não se sentia obrigado a cumprimentá-lo. Marx pensava que, afinal de contas, o infeliz era russo e estes já tinham prejudicado demais sua imagem pública com seus estranhos nomes e interpretações " inovadoras": este respondia pelo nome de Bakunin e tinha notória desconfiança do anfitrião. Havia poucos ingleses - sem surpresa, eram acadêmicos embevecidos- e os franceses tinham filósofos em excesso: Sartre e Merleau-Ponty lá estavam. Os alemães? Bem, havia alguns mais recentes, mas estavam desconfortáveis em cadeiras no canto direito do salão: um senhor calvo que tentava desesperadamente ouvir uma marcha wagneriana que a orquestra tocava, acompanhado de outro senhor mais comedido e um terceiro que, surpreendentemente, vestia um terno verde, para horror dos outros dois - Adorno, Horkheimer e Marcuse. Havia também um judeu magro que carregava sua tradução de Baudelaire, o Capital (para autógrafo de Marx) e uma edição surrada do componente Tallmain do Talmude (esta última oculta no paletó). Seu nome foi educadamente sussurrado ao seu lado por um húngaro elegante que dele se aproximou: "finalmente conheço o senhor, sou Gyorgy Lukács. Senhor Benjamin, eu presumo?" Não havia garçons, cada um se servia. Afinal, era uma festa de socialistas e comunistas, com boa música clássica, piadas russas. Marx não sabia como, mas havia aparecido dois convidados inesperados. Um usava trajes do século XVIII e olhava desconfiado para aquela Babel, o outro uma peruca que parecia ter vindo do outro lado da rua, ambos franceses: Jean Jacques Rousseau e Maxilien de Robespierre.
Já a festa corria por algumas horas quando surge a porta John Maynard Keynes. Vinha acompanhado não de Virginia Woolf mas de seu parceiro, Duncan Grant. A sala se agitou: Lenin, Trotsky e parte dos alemães vaiou; Bakunin defenestrou-se com um "agora chega..." e as lideranças do pós-guerra e da Europa aplaudiram entusiasticamente. Marx veio cumprimentá-lo com um sorriso: "para um economista burguês você se saiu bem, ajudou todo o bando de idiotas capitalistas. Ajudou a preparar o terreno para nossa vitória". Keynes ficou confuso: "Mas que vitória?". Marx piscou  um olho: "Ora, John, do socialismo". O que tinha de aristocrático em Lorde Keynes se agitou: "Como?" "Veja, caro, atravessamos o século XX entre reformas e revoluções, marchas e contramarchas, globalização e crise, estatização e privatização. Você não percebe? Você mostrou aos idiotas mas eles vivem cometendo os mesmos erros. Pode ser que tudo desmorone. E pode ser que o resto também fracasse. Os imbecis, americanos na maior parte, o chamam de socialista. Seja bem vindo, amigo. Faça amizade com Lênin, pode aprender muito. Cá entre nós, ele gosta de filosofia e acha aquele compêndio incompreensível que escreveu, Materialismo e Empirocriticismo, uma grande obra. Não o desiluda, ele já sofreu muito. Aliás, ele gostou de sua Teoria Geral, ainda que o considere um lacaio da nobreza. Eu adorei seu livro, mas ali faltam atores não é amigo? Quem diabos, afinal, move a história para você? A demanda agregada e o emprego?" E deu uma gargalhada. Keynes entrou ainda tonto, sem compreender o que afinal era isso, preferiu ir abraçar Adorno, que olhou desconfiado para seu acompanhante mas o cumprimentou cordialmente. 
O andar da noite trouxe ares mais frios. Ricardo fez grande sucesso, ainda que tenha sido pouco compreendido por alguns do lado direito da rua. Evidentemente Von Mises achou o discurso tímido e sussurrou a Hayek que teria sido melhor se Popper falasse. Sua prosa, afinal, era tediosa mas mais dura. Os mais ricos não se conformavam com a demora, tinha muita conversa e pouca ação. Mesmo no purgatório eles preferiam acompanhar a dança de Wall Street e tinham inspirado alguns investimentos em derivativos cambiais para incautos. A dicas tinham vindo do andar de baixo ao purgatório, mas eles nunca se importaram com isso...
Do outro lado, já havia acontecido dois incidentes com feridos. Sem se aguentar, Lênin xingara Rosa Luxemburgo e Keynes, no que foi surpreendido por uma defesa cavalheiresca de Delors e, pasmem, de Marcuse. Trotsky afastou Lênin que, inconformado, disse que desejaria saber por onde andava o idiota chinês que tinha feito uma marcha tão longa para terminar ajudando como líder do capitalismo mundial. Engels, que já chegara, disse que Mao e Deng foram vistos do lado de fora, mas um conjunto de fantasmas do exército vermelho havia impedido sua entrada. Lênin riu de forma incontida e foi convidar Gramsci para uma partida de xadrez: "a partida entre ocidente e oriente, Antonio; você sempre foi um dos meus preferidos, ainda que o ache tímido". Sartre ensaiou explicações sobre o nada, mas foi repelido suavemente por ninguém menos que Rousseau: "o senhor poderia, por favor, parar com isso? Não sei para que essa conversa sobre o nada, o outro e o inferno serve. Poderíamos tratar de questões públicas relevantes por favor? O que o senhor pensa da razão e sua aplicação no campo dos negócios humanos? O governo deve representar  afinal ,a vontade geral? E, gentil senhor, onde está aquela senhora simpática que esteve anos convosco?". Surpreso, Merleau-Ponty saiu para o lado e foi despedir-se de Lukács.
Ao saírem das festas era por volta das 5 horas de um novo dia no purgatório e os grupos se encontraram. Olhares enojados de ambos os lados. Keynes se escondeu, porque havia sido convidado para duas festas. Marx não se conteve e chamou por Mill e Smith que foram até ele cumprimentá-lo. Os socialistas do pós-guerra confraternizaram-se com alguns intelectuais americanos, mas mantiveram cuidadoso afastamento de banqueiros. Ao fim todos foram embora em carruagens. Não houve confronto físico, para decepção do trôpego Yeltsin e do cozinheiro Stálin. Todos seguiram sua jornada. 

Na vida real a disputa é outra, e não tem tido o mesmo fim amigável. Os conselhos vindos do andar abaixo do purgatório tem proliferado de ambos os lados. O andar acima tem laboriosamente se calado. As nuvens de 2008 não saíram do horizonte, mas os lucros e bônus voltaram a subir, a farra da desregulação permanece e as tentativas contra políticas de bem-estar crescem. A festa no lado direito da rua tem seus seguidores, muitos pobremente conscientes de quem são os personagens. Mas a festa do lado esquerdo tem menos personagens a olhar para ela. Eles preferem o convite ao lado direito ouvindo os conselhos vindos do andar abaixo do purgatório. Eles flertam com a barbárie e podem ver o cenário pintado por Marx na festa: pode ser que tudo desmorone. E pode ser que o restante também fracasse. E, se fracassar, a barbárie é um consolo improvável. É hora da esquerda voltar para o lado da rua que lhe compete, com todas as suas diferenças.

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