sábado, 3 de novembro de 2012

Apenas por obrigação e registro pós-ressaca eleitoral - resultado nacional e provincial



Hoje todos quase já se esqueceram das eleições provinciais. Passou-se uma semana do resultado, uma vez que é 3 de novembro.
Por todo o país, a gloriosa imprensa das famiglias debatia se Eduardo Campos, o governador de um estado turbinado por obras federais, será o homem da vez para a eleição de 2014. E, claro, se o fraco e pouco vitorioso Aécio Neves se aproximaria dele. Discussão idiota: se Campos tem juízo espera seu tempo e não se alia a Aécio, cuja expressão fora de Minas está por provar-se. O contrário também é verdade: se Campos tem pressa, pode ter mais problemas que soluções. Neste caso é Aécio que deveria esperar. Um detalhe interessante: somente para os analistas da Globonews o PT sai fraco das eleições - confundir desejo com a realidade pode provocar azia.
Serra foi derrotado, em nome da inteligência e contra o obscurantismo, e com ele uma boa parte do PSDB paulista. Os tucanos se renovarão? Para sua saúde é melhor que sim. Mas sem Sergio Guerra, Jereissati, José Anibal ou Alvaro Dias, não é? Deve ter coisa melhor guardada. Não sei se Arthur Virgílio é melhor, mas parece mais inteligente.
Ah, sim, tem o governo federal. Análises pós eleitorais tendem a enfatizar o local e esquecer o mais amplo. Algum incauto imagina o governo federal cheio de inação diante do cortejo de Aécio a Campos e do dar de ombros deste ao governo? A presidente no Planalto tem uma popularidade altíssima e energia para queimar.
Haddad representa uma nova geração no PT, da mesma forma que Campos representa isso para o PSB. Já Aécio não sei se é exatamente assim no PSDB, ainda que ele acredite que seja. Lula saiu mais forte, para variar, no candidato onde ele depositou suas fichas decisivamente. O bombardeio contra Lula vai aumentar, vindo desde a redação de jornais e revistas que representam a oposição até ilações de procuradores.
PT e PSB cresceram mais, PSDB menos e DEM continua encolhendo. ACM Neto é um espasmo, não uma liderança.

Na província de Juiz de Fora, resultado de uma das mais fracas, pouco debatidas e terríveis eleições dos últimos anos, onde quase nada de relevante foi apresentado, venceu o jovem candidato (38 anos) do PMDB. Sobre ele, escrevi na semana do dia 10 de outubro:

Bruno Siqueira aparece como jovem e capaz na publicidade, mas de onde veio? Como é sua relação com o passado? Itamar? Mas Bruno respira política desde que veio ao mundo, filho e afilhado (no sentido religioso-afetivo) de políticos é o que ele também é. Sua vida política inicia-se na Câmara de Vereadores e, na metade do segundo mandato, vai para a Assembleia Legislativa. Engenheiro de formação, não sei dizer se exerceu a profissão de Engenharia...
Se o tema da mudança chegou ao podium, o que restará para as campanhas? Acredito que Bruno precisa urgentemente falar de si, do seu passado, de suas opiniões sobre a cidade e até sobre a vida. Precisa mostrar sua história e que sua falta de experiência pode ser um fator positivo...
Certo é que o "novo" precisa qualificar-se, afirmar porque veio, sob pena de prometer ao eleitorado um banquete pantagruélico e entregar no fim um almoço com 100 gramas de alimento.

Com sua vitória, temo que Bruno Siqueira continue precisando fazer tudo o que foi escrito acima. Senão fica parecendo com aquele personagem que, sem saber o que fazer, entrega-se ás mãos de outros e começa um desmonte. Que seja o contrário aquilo que acontecerá.

Terminou esta festa. A vida continua. Espero voltar a escrever sobre coisas melhores.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

A província - avaliação e história sobre um 1°turno eleitoral

... o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão.
João Guimarães Rosa - Grande Sertão veredas

Padre Antonio Vieira escreveu: "Para nascer, Portugal; para viver, o mundo". Neste espírito, ao tratar de avaliações eleitorais, é impossível deixar de considerar a província. Vivo em uma cidade-pólo onde observo o mundo a partir de uma universidade federal: Juiz de Fora, MG. Cidade de 530.000 habitantes, quinta maior arrecadadora do Estado, pólo de mais de 2 milhões de habitantes, centrada em comércio/serviços e uma economia industrial relativamente diversificada - montadora, siderúrgica, construção civil, química. Do ponto de vista eleitoral, 386.600 eleitores, dos quais participaram efetivamente do pleito - retirando abstenção, votos nulos e brancos - cerca de 74% do total. A cidade vem votando em segundo turno desde 1992; nenhum dos candidatos, todo este tempo, passou de 41% dos votos efetivos no primeiro turno. Como detalhe adicional, há 30 anos (desde 82) três nomes sempre estiveram à frente do executivo - um candidato do PMDB (Tarcísio Delgado), um do PSDB (Custódio Mattos) e um de vários partidos (PJ, PFL, agora PSL). O primeiro, por três vezes; o segundo outras duas e o terceiro mais duas. Considerando a história recente, dois deles - Tarcísio e Custódio - tem carreira originada ainda nos anos 70, o primeiro como político e o segundo como técnico, primeiro do IPEA e depois assessor de Itamar Franco. O terceiro, Bejani, tem origem de radialista, na esteira dos políticos que emergiram com Collor e depois permaneceram combinando oportunismo com demagogia. Este ultimo terminou perdendo o mandato em 2008, após ser inclusive detido por corrupção.
Desde 1992, com o aparecimento do 2º turno eleitoral nos municípios maiores de 200.000 eleitores, a cidade flertou com candidatos "diferentes" dos três. Em 1992, com o petista Paulo Delgado, amargando um quarto lugar mesmo crescendo no fim do 1º turno; em 1996 com Reginaldo Arcuri, candidato tucano próximo a Custódio que chegou em terceiro; em 2000 com Renê Matos, ex-Reitor da UFJF pelo PSB; em 2004 com João Carlos Vitor Garcia (PPS), mesmo terminando em quarto teve surto de crescimento limitado; em 2008 com Margarida Salomão (PT). De todos, apenas Margarida em 2008 foi ao 2º turno, pois os demais lá não chegaram. O flerte terminou em desmonte: todas as novidades sucumbiram na política local e mesmo nacional ou estadual até 2004. Em todos os pleitos de 2º turno, entretanto, sempre lá estiveram, ganhando ou perdendo, Tarcísio, Custódio ou Bejani. Para tornar a equação mais significativa, e compreender melhor o cenário local, o ex-presidente Lula ganhou aqui TODAS, sim, TODAS, as eleições que disputou para a Presidência. Para governador, o pleito sempre foi disputado com resultados muito díspares, onde o próprio ex-governador Aécio, que julga-se como a maior liderança de Minas, enfrenta dificuldades.
O pleito de 2012 aparece com Custódio novamente como candidato, com uma taxa de rejeição parecida com a indicada para Serra em São Paulo. Muitos acreditaram, inclusive este que escreve, que seria possível quebrar parte desta rejeição e ele apresentar-se como alternativa à liderança isolada, sempre próxima de 40%, da candidata Margarida Salomão, enquanto o terceiro candidato precisava construir-se como candidato e alternativa. Quem cresceu durante a campanha foi justamente o candidato do PMDB, Bruno Siqueira, político de 38 anos, duas vezes vereador, no segundo mandato saindo na metade para cumprir sua eleição de deputado estadual em 2010. Sem rejeição, flanou em nado livre galgando progressivamente posições até chegar, ao final, ao patamar de 40%, contra 37% (números arredondados) da candidata do PT. Custódio marcou 20%, mesmo reduzindo sua rejeição em 15 pontos.
A questão importante é: por que?
1 - cenário nacional? Ou estadual? Que nada, pleito local, com marcações locais, debate local e excessivamente autocentrado. O apoio de Lula e Dilma na TV a Margarida pode ter ajudado a manter seus patamares, mas não resolveriam a eleição. Custódio foi abertamente apoiado por Aécio e o governador atual, mas esses pouco tem ação sobre a cidade desde sempre;
2 - campanhas muito superiores umas às outras? Engano. A campanha de Custódio foi a mais competente do ponto de vista argumentativo, informativo (pois ele claramente careceu de comunicação eficiente por quase 4 anos) e para "limpar" a rejeição. Margarida fez campanha para quem já estava na liderança, organizando propostas, mostrando o que não foi feito e intentando contribuir para uma maior desconstrução de Custódio. Bruno fez a campanha mais vaga, ainda que com bons instrumentos de comunicação, alimentados por questões candentes e propagandas repetitivas. No caso de Custódio o "belo" revelou-se insuficiente; para Margarida a organização de propostas não ampliou as informações sobre a candidata; para Bruno, propostas " telegráficas" se alternaram em torno do conceito de "novidade";
3- em termos de material, a cidade estava com pouca fartura neste quesito. Assemelhou-se a uma chuva de papéis pouco significativa (afinal, quem decide voto com horríveis "santinhos"?), "mini-doors" (o mundo publicitário adora anglofilia, de "case" a "target"), os adesivos. Poucos comícios . Em minha modesta opinião a Justiça eleitoral é desnecessária, incapaz de controle e sofre pelo excesso de regras. Mas isto é uma conversa para outra ocasião.
4 - lideranças políticas foram decisivas? Improvável. Aécio usa sua força onde ele sabe que tem alguma, pouco faria aqui. Lula e Dilma aqui podem mais, mas não parecem ser decisivos; ajudam mais a sustentar que definir uma avalanche de votos. Tarcísio Delgado pouco apareceu na campanha. Bruno parece solto no ar, ainda que preso ao passado de Itamar.
Creio que esta eleição teve um calendário muito restrito, curto mesmo. Mesmo com a campanha começando em julho/agosto, a TV em agosto, ficou a impressão de um debate acalorado nos últimos 15 dias e um posicionamento do eleitor muito próximo desta data. Margarida e Custódio traziam "recall" (anglofilia, me perdoem) para o bem ou para o mal; Bruno trazia apenas a si. Ambos tinham mais rejeição, (Custódio, no fim, o dobro da candidata do PT) e Bruno combinou a falta dela com desconhecimento sobre si. Sua estratégia foi mais eficiente: vindo quase do nada, abandonando sua história de vida e afirmando sua proximidade com Itamar Franco atuou sobre o imaginário em dois sentidos: o primeiro mostrando sua  "novidade" e sua "juventude" como honesta e bem intencionada; em segundo dizendo que trazia o espírito de Itamar de volta para a cena, pois, como ele, este também assumira a prefeitura da cidade na mesma idade. A estratégia de Margarida foi primeiro falar do PT e suas administrações, depois dela e finalmente das propostas. Detalhe: o PT e Margarida também seriam a diferença, o outro lado do aspecto "novidade" para a eleição. Este fato também foi confirmado pelas urnas.
A racionalidade da campanha do PSDB sucumbiu diante da rejeição e do cenário do "novo". As correntes de opinião não sorriram para Custódio em nenhum momento, mesmo diante de alguém que é uma importante liderança local. A linha de manual adotado pelo PT congelou  a candidatura basicamente onde ela começara, o que era uma estratégia mais de manutenção da liderança e reafirmação da diferença, ainda que mais contra Custódio que contra Bruno. Ainda que esta estratégia tenha eficácia, ela apresenta limites e alguns riscos, o que ficou claro ao fim do primeiro turno. Ao fim, Bruno termina em primeiro e Margarida em segundo. Pela primeira vez desde o advento do 2° turno nenhuma das três forças que dividiram o executivo em 30 anos estarão ali presentes. Por si só, este dado indica que a combinação de "novo" com "inovação" é o recado eleitoral mais claro.
Portanto, nem cenários externos, nem programas de TV "revolucionários" e  mensagens brilhantes, nem lideranças fortes ou material vasto e bem feito. Ao fim, triunfou o desejo de mudar. Trata-se de um conceito vago, difuso, mas que analistas conhecem bem. A campanha de Barack Obama em 2008 não foi somente "yes, we can", foi também, e principalmente "change, we can". Mas como o desejo de mudança não se manifestou assim antes? Afinal, alternativas foram ficando pelo caminho. Mas nenhuma delas parece ter alcançado o sentimento de mudança tão forte quanto agora e isto porque a cidade veio de duas administrações  de nomes tradicionais, identificadas com problemas: primeiro, a eleição de Bejani e o desastre ao alcance de um tribunal penal; depois a decepção estampada na rejeição a Custódio. Com Tarcísio fora, ele que não saiu tão bem avaliado de sua última gestão, adubou o terreno para a impaciência e a novidade. Qual seria então, no 2º turno, a relevância de Custódio, com os 21% que obteve? Difícil saber por duas razões: um apoio explícito pode transferir rejeição? A liderança de Custódio pode carrear votos para Bruno? Que percentual dele efetivamente passa? Pesquisas eleitorais podem aferir isso, aqui, sem elas, somente posso perguntar. A única certeza é que Custódio não apoiaria Margarida. Mesmo que quisesse, e certamente não quer, o quadro regional e federal não permitiria.
A história às vezes pode ser madrasta, mas dificilmente deixa de ter importância. A história recente parece ser de fracassos e o termômetro para a mudança subiu. Se estamos diante de dois candidatos que representam o mote central, qual o cenário? Permitam-me arriscar uma opinião sobre a história. Bruno Siqueira aparece como jovem e capaz na publicidade, mas de onde veio? Como é sua relação com o passado? Itamar? Mas Bruno respira política desde que veio ao mundo, filho e afilhado (no sentido religioso-afetivo) de políticos é o que ele também é. Sua vida política inicia-se na Câmara de Vereadores e, na metade do segundo mandato, vai para a Assembleia Legislativa. Engenheiro de formação, não sei dizer se exerceu a profissão de Engenharia. Margarida começa sua trajetória política ainda nos anos 70, desenvolveu experiência em cargo público em administração anterior na cidade (na década de 80) e foi Reitora na UFJF por dois mandatos. A distância "geracional" que a separa de Bruno é  de 24 anos.
Se o tema da mudança chegou ao podium, o que restará para as campanhas? Acredito que Bruno precisa urgentemente falar de si, do seu passado, de suas opiniões sobre a cidade e até sobre a vida. Precisa mostrar sua história e que sua falta de experiência pode ser um fator positivo. A Margarida deveria importar a associação do tema da "inovação" com a experiência, o novo com a capacidade política - inclusive nacional. Não resta alternativa, do ponto de vista da disputa, a não ser demonstrar ao eleitor que esta combinação pode ser melhor para a cidade e Bruno pouco capacitado em conjugá-la de forma mais eficiente.
O resto será história em duas semanas. Uma campanha virulenta, com denúncias requentadas ou falsificadas, sem debater a cidade, pode ser um dos caminhos escolhidos. Certo é que, agora, o "novo" precisa qualificar-se, afirmar porque veio, sob pena de prometer ao eleitorado um banquete pantagruélico e entregar no fim um almoço com 100 gramas de alimento.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

A título de uma avaliação "a quente" - o 1° turno das Eleições Municipais

A eleição municipal passou, ou pelo menos seu primeiro turno. Este pleito foi eivado, por todo o país, de dúvidas quanto ao impacto da ação 470, de uma derrocada do PT e seus aliados, de uma revanche da oposição, do surgimento de novas lideranças. Ledo engano. Senão vejamos:
- confundir eleições municipais com o cenário nacional vem sendo um equívoco repetido ano após ano. Se existe apoio de liderança nacional a um candidato(a) este subsiste pela força do apoiador, não pelo temário político mais geral;
- como correlato, esperar que a ação 470 se manifestasse como deus ex machina e favorecesse a oposição ao PT era um desejo ... e só. Foi somente isso mesmo;
- urnas abertas e o PT permanece sendo o único partido que, ao longo de sua trajetória, continua mantendo o crescimento no número de cidades que administra. Já o DEM (em particular) e o PSDB precisam refletir sobre suas ações e equívocos. Em Curitiba a paróquia tucana expulsou Fruet do quadro e, como prêmio, ficou fora do segundo turno. Para o PT, duas derrotas importantes: o desastre Humberto Costa e em Porto Alegre. Em Recife perde pelos percalços de sua aliança, em Porto para o PDT. Detalhe importante: nada de PSDB ou DEM com relevância neste quadro. 
- não é somente isso. Aumentou o número de eleitores enquanto o PSDB, se perder em São Paulo, aumentará sua frustração;
- Belo Horizonte é uma vitória de Aécio? Em termos. Marcio Lacerda é uma criatura sua e de Pimentel. Imagino como o PT de lá lamenta agora. E Patrus até ameaçou no final ... Mesmo sendo apoiado pelo ex-governador, Márcio é do PSB. E, para mostrar a complexidade da questão em relação ao papel do ex-governador, seus interesses foram contrariados nos maiores colégios do Estado - Uberlândia, Juiz de Fora, Governador Valadares, talvez em Montes Claros, em Uberaba, em Contagem, Ipatinga ... e na sua cidade natal, S.João de Rey onde o PT venceu. Ah, sim, ele apoiou o vencedor em Betim.
- O PSB indubitavelmente cresceu, e tornou Eduardo Campos o interesse da vez. O ex´presidente Cardoso já declarou a necessidade de se aproximar dele. O senso de oportunidade de Cardoso anda um tanto fora de sintonia, uma vez que esta declaração apoiando os "socialistas" foi muito rápida. Aécio corteja Campos há meses. O quadro é difícil porque Campos diz apoiar Dilma na reeleição e o PSB ser um partido importante da base. Márcio Lacerda recebeu algumas pressões e agora o apoio do PSB ao PT em São Paulo deve estar claro. Ah sim e Campos tem projeto próprio para 2018;
- Lula, que é defenestrado ao inferno por muitos (do lixo midiático, mas também por Ferreira Gullar), de certa forma fez duas apostas difíceis: Recife, onde claramente perdeu, e Belo Horizonte, onde perde em parte. Em BH, entretanto, Lacerda esteve sempre perto dos 50%, já Patrus cresceu de forma consistente durante a campanha. Mas, fora isso, ajudar a empurrar Haddad ladeira acima foi uma demonstração de força, mesmo com os mérito do candidato. E existem casos interessantes no interior: como Haddad, Marcio Pochman, professor da UNICAMP e ex-presidente do IPEA, estreou em um pleito e foi ao segundo turno em Campinas, enfrentando lá o PSB. Lula também incentivou e passeou por lá.
- Já no Rio, que me desculpem meus amigos, Paes foi passear na eleição mesmo com todos os seus defeitos, alguns muito nítidos. Freixo apresentou-se como liderança. Esperemos que não faça como Marina Silva, a "vitoriosa" (para a imprensa e os neoverdes de plantão) na eleição presidencial passada que virou suco no liquidificador da política brasileira e foi reduzida à dimensão eleitoral que tem.
- São Paulo terá a "mãe de todas as batalhas". Aqui se digladiam os pares dicotômicos da política nacional e onde o PSDB trava uma luta sobre si mesmo. Serra novamente, com 45% de rejeição e 31% do eleitorado contra os 15% de rejeição de Haddad e 30% do eleitorado. No jogo entram Russomano, com sua fluida base de apoio que "derreteu" na campanha, e Chalita. Soninha e Paulinho onde sempre estiveram: com nada e coisa alguma, ainda que Soninha seja Serra convicta e Paulinho ... sei lá. Aqui voltarão o mensalão (que não foi personagem no 1° turno), descalabros religiosos, grosserias nas ruas e a costumeira "cobertura" da imprensa paulistana. Se Haddad vencer, Lula, Dilma, Haddad e o PT em geral sairão ainda mais fortes - e o PSDB com mais feridas e com um projeto menor. Se Serra vencer ele pode abandonar a Prefeitura de novo em 2014 para seu voo presidencial (chocando-se com Aécio e, quem sabe, Alckmin). Mas, a cidade de São Paulo, que o rejeita tanto e que lhe impôs uma derrota nas cercanias de toda a cidade, permitirá sua vitória? Pode ser, o microcosmo paulistano diz muito ao imaginário político e jamais deve-se subestimar a política amigo/inimigo de Serra (quem sabe um leitor de Carl Schmidt?) ou a verve irônica e furiosa do PT (sua irresistível combinação de Maquiavel e Rousseau) que irrita seus adversários e incentiva seus defensores.
Escrever um dia depois tem seus riscos. Mas é um mero exercício em cenários onde muito se tem a dizer. Foi uma eleição de rupturas? De forma alguma. Com forças inovadoras? Certamente em alguns lugares, não na média geral. Foi mais um capítulo na rotinização da democracia, o que muitos odeiam.
Em breve publico mais um pouco sobre isso. Com pitadas provinciais ...

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Entre o fato e a ficção - reflexões sobre fatos recentes envolvendo a grande imprensa nacional

"Como eles ousaram, eu igualmente ouso. atrevo-me a dizer a verdade, uma vez que os canais normais da justiça não o fazem. Meu dever é falar, não quero ser cúmplice desta farsa. De outra forma, minhas noites seriam assombradas pelo fantasma de um inocente a expiar, na mais terrível tortura, um crime que ele não cometeu"
Émile Zola - J'accuse 


Há páginas que uma vez escritas ganham a dimensão épica da indignação. O mais famoso manifesto anti-fraude do século XIX é a célebre manifestação de Émile Zola em defesa do Capitão Alfred Dreyfus, falsamente acusado com provas fraudulentas (a acusação chave era por espionagem para os alemães) e duas vezes condenado antes que fosse finalmente inocentado quando da descoberta do verdadeiro culpado. Ao ser afastado do exército, Dreyfus foi parte de uma cerimônia de execração, quebrando sua espada de oficial da artilharia e depois conduzido para a prisão na Ilha do Diabo. O caso foi ruidoso inclusive porque provas de inocência foram ocultadas, agravando ainda mais o fato, e pelo papel da imprensa repercutindo amplamente o caso, seja na ausência de prova contundente, seja não fazendo eco sobre novas investigações. Foi preciso que vários intelectuais, imbuídos de notável senso de responsabilidade pública, ganhassem estatura ainda maior, caso de Zola ou Anatole France. Foi o primeiro quem produziu a notável carta (ao presidente francês Felix Faure) intitulada J 'accuse.
O regime democrático é pródigo de dois elementos, entre outros, muito peculiares. O primeiro é a amplidão do espaço para livre expressão - de crença, ideologia, opinião - base da construção da vida pública e do exercício dos direitos. A outra é a própria dificuldade de sua operação: uma democracia exige a paciência de seus atores, seja pelo contraditório, pela diferença, pela necessidade de negociação, pela lenta maturação, pelo debate. Não é a melhor forma para obter resultados expeditos, mas é exatamente nela onde estão as melhores oportunidades para a fruição dos desejos e oportunidades dos indivíduos e das organizações.
No exercício da vida cotidiana em um regime democrático o direito a informação tem na imprensa um elemento central. Ela representa a possibilidade em permitir o fluxo de informações cotidianas em direção ao "leitor-cidadão", assim contribuindo para constituir a formação de uma "opinião pública". Não por acaso, França, Inglaterra e depois os Estados Unidos são casos exemplares da relação imprensa/opinião pública. Há muitas formas para produzir este efeito e podemos citar duas situações relevantes: a ampliação da escolarização (com a maior capacidade em interpretar informações) e uma possibilidade aberta ao público para a constituição e análise de "fatos" aparentemente concretos, mas que podem produzir outras interpretações. Em linguagem de redação há "um outro lado", mas também existe a possibilidade do erro (deliberado ou não) na divulgação e interpretação dos fatos. Bons veículos reconhecem quando erram ou divulgam inverdades, mas o que acontece quando se persegue um "fato" (supostamente concreto) e segue-se produzindo fatos que (forçosamente) possam confirmar o "fato inicial"? E se o fato inicial não puder ser comprovado exceto por evidências frouxas, "opinião" e moralidade duvidosa?
Ou pior, com a lógica que presidia regimes de exceção como o stalinismo: a melhor prova é que não existe prova. Por que? Porque se ela não existe o culpado a escondeu e porque escondeu ... é culpado. E, mais grave, se ele estiver em posicão de "força e influência" é ainda mais culpado, exatamente porque usou desta influência para ocultar provas.
Este exercício vem sendo alimentado com ares de notório saber jurídico. Não sendo jurista, resta-me apenas esgrimir argumentos. Ao contrário de alguns jornalistas de grandes órgãos de comunicação escrita e televisionada, nunca me passou pela cabeça tentar "julgar" e  "apenar", menos ainda esgrimir teses obscuras para justificar falta de provas objetivas. A preocupaçao aqui expressa é o comportamento da imprensa, particularmente um semanário de qualidade ruim e sempre na berlinda e algo como uns três jornais (e alguns satélites estaduais em Belo Horizonte, Porto Alegre ou Brasília) que opinam, discutem, constroem manchetes e não informam sobre fatos, mas sobre opiniões dos chefes de redação, dos proprietários dos veículos e de jornalistas ávidos (com todas as óbvias exceções) em ajudar nesta cruzada.
A imprensa brasileira desgosta lembrar-se das suas parlapatices. Antes as ignora. Recordar é viver: Escola Base de São Paulo, acusação indigna contra Ibsen Pinheiro, cassação sem provas de Alceni Guerra, dinheiro cubano em um avião para a campanha de Lula (alguém acreditou neste diatribe? Dólares cubanos???).  A lista pode aumentar, mas há alguns "personagens" de imprensa sempre presentes. O tal semanário de péssima qualidade é frequente na lista do não reconhecimento de erros e na insistência do "fato"que sempre precisa de muitos "fatos" para comprovar o primeiro e que vão sendo produzidos semana a semana. 
O ultimo, na esteira deste triste processo que se desenrola no STF , é uma entrevista que o tal semanário insiste que é real, ofertada por "parentes e amigos" de Marcos Valério. "Parentes e amigos"? Que fonte extraordinária. Por que o áudio não está divulgado no sítio do tal semanário? Alguém ouviu? Onde estão as fontes? Claro, preservadas no anonimato. Mas existem documentos? Onde estão? Podem ir para o mesmo sítio, ou talvez para o Google Docs. Há também a inefável figura do Inspetor-Geral (que Gogol nos perdoe), homem que produziu uma formidável peça de acusação onde faltam provas mas restam adjetivos, que rapidamente diz ser necessário apurar a responsabilidade do ex- presidente Lula; sempre ele. O mesmo ex-presidente que não foi incluído no processo original. E investigado com base em um áudio que não é apresentado e declarações de redação de uma revista com o histórico de "dólares cubanos"? Senhor inspetor: a tal imprensa, ainda que timidamente, não disse que existiu outro "mensalão" em Minas? Que tal uma peça para julgá-lo? Existe algum processo de compra de votos sobre a reeleição de um outro ex-presidente? Não houve nenhuma denúncia? Foi arquivada?
Ano eleitoral é um ano de guerra. O ex-presidente Lula sai do cargo com aprovação recorde (ao contrário do que o antecedeu) e é um eleitor reconhecidamente influente. Ele insiste em apoiar candidatos que saem atrás e gosta de ver suas curvas de crescimento. Obviamente que não é somente o ex-presidente, afinal candidatos também tem performances que podem influir no resultado. Mas Patrus e Haddad não podem prescindir de Lula, bem como ele é importante para candidatos do PT em cidades relevantes Brasil afora. Pior: Lula pode desejar retornar e concorrer a presidência em 2018. Que horror! De novo este metalúrgico? Imbuídos do típico preconceito de classe, alguns críticos (lamentavelmente paulistas, me desculpem meus amigos de São Paulo que não merecem esta elite política atrasada e racista) chamam-no de "molusco" (afinal nominá-lo nordestino seria forte demais!), leitores vorazes de um lamentável escrevinhador de chapéu panamá, ex-editor de revista ligada ao PSDB (a publicação "quebrou" sem apoio oficial do seu partido após o fim do ciclo tucano),  sendo hoje colunista do tal semanário ("veja" bem) de baixa qualidade que vê apenas o Brasil caminhando ao abismo. 
Os conservadores perderam as três últimas eleições. Perdoem-me os colegas do PSDB, mas conservadores sim. Não como xingamento, isto seria uma estupidez. Conservadores porque não enxergam avanços, porque confundem ação pública com intervenção descabida, reforco do Estado com "aparelhamento" e política social com oportunismo. Se erros ocorrem, acertos não? Preferem o caminho do ranger de dentes udenista à reformulação de seu programa e de sua ação. Até golpe de estado travestido de processo relâmpago no Paraguai ganha defesa de alguns desses senhores.
Que tal permitirmos que as eleições tenham somente dois turnos?  Sim, porque parece que estamos no quarto ou quinto turno contra Lula e no terceiro contra Dilma. Poderia a imprensa indubitavelmente livre (para produzir fatos, debater ficção e gravar entrevista sem áudio .. ah, e também para divulgar notícias) fazer um grande favor a República e realizar seu papel, denunciar (desde que com fundamentos, por favor) e apurar (com a mesma recomendação), mas parar de tentar interferir no processo democrático de escolha construindo ilações contra ex-presidente, atual presidente e operar com "notável" saber jurídico? Que tal divulgar dados econômicos dando igual destaque a problemas e bons resultados? Indicar a fonte dos relatórios que cita e parar de enviar eleitores e telespectadores ao seu sítio internet em lugar de oferecer o endereço onde as informações realmente estão? Muito importante: admitir quando erra. Jornais e revistas no Brasil tem poucos leitores. Há que se lamentar isso? No quadro atual de desinformação e guerra de informações enviesadas não há vantagem em ler esses produtos do mercado midiático. Que tal ler ao longo da internet? Ou dedicar-se aos bons livros? Ou buscar informações fora da grande imprensa? Ler sempre ... Estudar. Para escapar das armadilhas da informação pela metade.
Sugiro aos meus poucos leitores um exercício: passar 14 dias examinando três jornais de circulação nacional (dois paulistanos e um carioca) e o tal semanário de capa frequentemente vermelha e bombas de ocasião (aquele da entrevista sem áudio). Anotem as manchetes de primeira página: se 75% não representar críticas ao governo central ou dados negativos sobre economia seria ótimo jantar com o ex-presidente Cardoso em um restaurante nos Jardins para falarmos de sociologia, das  alterações no tecido social brasileiro, nos deslocamentos de classe, nas oportunidades de crédito, nas práticas anticíclicas, na política externa brasileira e na sua relação com a "Terceira Via". Poderemos conduzir a conversa em português e inglês para sua excelência ficar a vontade. Dizem que Cardoso é um interlocutor inteligente e espirituoso. Acredito. Mesmo assim não gosto dos seus dois mandatos.
Claro que a imprensa pode acertar, claro que existem notícias não ficcionais e reflexões relevantes. Mas o problema é que o espetáculo feérico produz mais lixo midiático que reflexão consequente. Mais entrevista sem áudio que interlocução de qualidade. Tem chefe de sucursal como amigo (e receptor de "notícias") de preso aguardando julgamento. Mais divulgação de um parágrafo crítico em um relatório do IPEA que do documento como um todo de dados positivos. Uma noção onde endividamento familiar iguala gasto com Channel n.5 e dívida para aquisição da casa própria, onde inadimplência de 5,9% ante um crescimento de crédito de 65% é uma "catástrofe" perigosa e o repique do preço do tomate é uma senha para a disparada do ohhhhhh, aquele monstro da inflação. 
Este é também o ano da eleição para presidente dos EUA. Lá o semanário de capa frequentemente vermelha seria um panfleto republicano de quinta categoria do interior de Utah. Olhando para os ingleses, este semanário, em outro delírio, pode acreditar ser uma versão tupiniquim de "The Economist", bíblia liberal conservadora. Mas antes precisa: 1) de melhores jornalistas; 2) de chefia de redação intelectualmente mais capaz; 3) de editoriais reconhecendo seu lugar no espectro ideológico e 4) de responsabilidade jornalística. Não há problema algum em ser conservador ou liberal, há problema quando mergulha-se no pântano do caráter duvidoso.
Creio que precisamos de Zola. Precisamos atualizar J'accuse. Ontem como hoje há a construção de um edifício de mentiras e verdades intermediárias, de atores que participam do jogo produzindo peças de acusação e ignorando as peças de defesa,  que tomam o "fato" sem prova pelo fato em si. Por que tudo isso? Porque há outras forças no jogo. Há uma opinião diversa do centro de boatos e "fatos", há atores organizados para além da agenda conservadora, há mudanças tectônicas em ação. Na França de Zola era a combinação do anti-semitismo com a agenda da direita monarquista; aqui, hoje, o mix de conservadorismo elitista e racista com moralismo de catecismo. Se existe crime, que se prove, processe e prenda. Mas é preciso compreender quem joga, como e porque e também acusar o papel desempenhado por uma horda furiosa de produtores de "fatos", de entrevistas sem áudio, da divulgação de um inferno cuja temperatura parece sempre aumentar mesmo que esta diminua e as nuvens deixem entrar rasgos de sol. Estamos muito longe do que queremos, claro que temos problemas, mas começamos de algum lugar. Não reconhecer isso é a combinação de preconceito, ação ideológica e fatos "fabricados". É preciso acusar quem se serve desses artifícios. O exercício do conhecimento in medio virtus, não nos extremos do espectro. É hora da imprensa exercitar um pouco do caminho do meio. Mas será que seus interesses permitirão isso? No quadro atual, lamentavelmente, não.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Festa no purgatório entre liberais e socialistas - um relato farsesco do banquete intelectual

Houve uma festa no purgatório. De  lado direito da rua a decoração lembrava a soberania do indivíduo, consagrada em textos legais e celebrada na literatura, cantada e decantada por vozes fortes como Constant ou Stuart Mill, Mandeville ou Smith, Spencer ou Pareto e, com maior favor por menor originalidade, Hayek ou Fridman. E há o surpreendente encontro entre o anarquismo a esquerda, uma "planta exótica" do século XIX com o neoliberalismo de Nozik, a celebração exótica do estado mínimo.  A reunião desses fantasmas obriga o fraque como traje: Spencer acresceria as polainas e a cartola, Mandevile e Smith o completam com longas perucas brancas e o anarquista, sentindo-se um tanto desconfortável nesta companhia, surgiria em trajes rotos, para ressaltar sua diferença. Quesnay e Turgot continuam lamentando o fracasso reformista, que para eles era a causa de todo o terror socialista posterior. Corria em sussurros que Keynes teria sido convidado, mas declinara porque estava se sentindo muitíssimo enjoado com tudo que estava acontecendo e teria preferido ler poesia junto a Virginia Woolf.
Havia convidados recentes, vindos da Áustria, em longas carruagens: Von Mises liderava uma comitiva e chegou abraçando-se a Hayek. Ambos debatiam com Popper como fazer que os obtusos líderes liberais da Europa compreendessem que era preciso um recuo tático para salvar bancos, propriedades e a iniciativa privada. Dos Estados Unidos vinha a maior delegação, com a Economia da Universidade de Chicago a frente, mas secundada pelo MIT e Harvard. Traziam uma imensa placa de ouro para ser entregue aos austríacos e incentivavam com aplausos tímidos o encontro entre Reagan e Yeltsin, o único russo presente. Margareth Thatcher ainda permanece viva, não poderia saber da festa. 
Também encontravam-se ali banqueiros suiços sem nome (evidentemente) e grandes nomes da iniciativa privada: Carnegie, Rockefeller, Morgan, Schindler, Bosch, Krupp, Rothschild e outros discutiam a recente crise com alguns olhares odiosos aos banqueiros. Mas, todos estariam prontos e alertas para ouvir o grande discurso da noite: David Ricardo faria uma apreciação da economia nos últimos quinhentos anos. Perguntado sobre isso, ele respondeu: "é simples: indivíduo, propriedade e liberdade. O resto é conversa, teorias exotéricas e ilusões holísticas".
Do  lado esquerdo da rua estava reunido outro clube. Seu lema envolvia a defesa de projetos coletivos, proteção social e o gosto pelas classes e seus conflitos. Mas tudo segundo diferentes medidas. Marx era o anfitrião, mas estaria devendo o aluguel do salão. Engels ainda não teria chegado, preocupado que estava em impedir que o genro de Marx, Paul Lafargue, se aproximasse da festa, uma vez que o líder do socialismo tinha notória má vontade com o rapaz, que o venerava. Mas lá dentro estaria reunida a fina flor da esquerda: o próprio anfitrião, desfilando orgulhoso com o chateau lafite dos Rothschild, Kaustsky com sua longa barba entabulando debates com Rosa Luxemburgo e Bernstein sobre a situação politica alemã (claro que todos considerariam Angela Merkel um lixo, ainda que Bernestein frequentasse eventualmente os mesmos locais que ela), Plekanov sentava-se a um canto escuro e Lênin gargalhava explicando como os seus defensores vivos não tinham entendido nada, no que era acompanhado por Trotsky que trazia consigo um exemplar de Thomas Mann. Stalin permanecia na cozinha ajudando a preparar o jantar, o que era motivo de desconfiança em todos os russos presentes. Havia convidados mais recentes: conversavam em uma animada roda de "reformistas" figuras díspares; Olaf Palme, Enrico Berlinguer, Palmiro Togliati, Helmut Schmidt, George Marchais, o elegante Jacques Delors (que achava, como Schmidt, que o convite havia sido enviado por engano) e um italiano  desgrenhado que olhava para os lados com frequência. Em um momento, Lênin gritou seu nome após um gole de vodka: "Gramsci, venha cá com os bons". Marx o fuzilou com os olhos do outro lado e prometeu a si mesmo que falaria com esse russo sobre modos. O anarquista que estava do outro lado da rua decidiu entrar e ver a festa. Sua aparição provocou um grande alarido no salão lotado e o cidadão teve uma cadeira colocada longe de Marx, que tolerava sua presença mas não se sentia obrigado a cumprimentá-lo. Marx pensava que, afinal de contas, o infeliz era russo e estes já tinham prejudicado demais sua imagem pública com seus estranhos nomes e interpretações " inovadoras": este respondia pelo nome de Bakunin e tinha notória desconfiança do anfitrião. Havia poucos ingleses - sem surpresa, eram acadêmicos embevecidos- e os franceses tinham filósofos em excesso: Sartre e Merleau-Ponty lá estavam. Os alemães? Bem, havia alguns mais recentes, mas estavam desconfortáveis em cadeiras no canto direito do salão: um senhor calvo que tentava desesperadamente ouvir uma marcha wagneriana que a orquestra tocava, acompanhado de outro senhor mais comedido e um terceiro que, surpreendentemente, vestia um terno verde, para horror dos outros dois - Adorno, Horkheimer e Marcuse. Havia também um judeu magro que carregava sua tradução de Baudelaire, o Capital (para autógrafo de Marx) e uma edição surrada do componente Tallmain do Talmude (esta última oculta no paletó). Seu nome foi educadamente sussurrado ao seu lado por um húngaro elegante que dele se aproximou: "finalmente conheço o senhor, sou Gyorgy Lukács. Senhor Benjamin, eu presumo?" Não havia garçons, cada um se servia. Afinal, era uma festa de socialistas e comunistas, com boa música clássica, piadas russas. Marx não sabia como, mas havia aparecido dois convidados inesperados. Um usava trajes do século XVIII e olhava desconfiado para aquela Babel, o outro uma peruca que parecia ter vindo do outro lado da rua, ambos franceses: Jean Jacques Rousseau e Maxilien de Robespierre.
Já a festa corria por algumas horas quando surge a porta John Maynard Keynes. Vinha acompanhado não de Virginia Woolf mas de seu parceiro, Duncan Grant. A sala se agitou: Lenin, Trotsky e parte dos alemães vaiou; Bakunin defenestrou-se com um "agora chega..." e as lideranças do pós-guerra e da Europa aplaudiram entusiasticamente. Marx veio cumprimentá-lo com um sorriso: "para um economista burguês você se saiu bem, ajudou todo o bando de idiotas capitalistas. Ajudou a preparar o terreno para nossa vitória". Keynes ficou confuso: "Mas que vitória?". Marx piscou  um olho: "Ora, John, do socialismo". O que tinha de aristocrático em Lorde Keynes se agitou: "Como?" "Veja, caro, atravessamos o século XX entre reformas e revoluções, marchas e contramarchas, globalização e crise, estatização e privatização. Você não percebe? Você mostrou aos idiotas mas eles vivem cometendo os mesmos erros. Pode ser que tudo desmorone. E pode ser que o resto também fracasse. Os imbecis, americanos na maior parte, o chamam de socialista. Seja bem vindo, amigo. Faça amizade com Lênin, pode aprender muito. Cá entre nós, ele gosta de filosofia e acha aquele compêndio incompreensível que escreveu, Materialismo e Empirocriticismo, uma grande obra. Não o desiluda, ele já sofreu muito. Aliás, ele gostou de sua Teoria Geral, ainda que o considere um lacaio da nobreza. Eu adorei seu livro, mas ali faltam atores não é amigo? Quem diabos, afinal, move a história para você? A demanda agregada e o emprego?" E deu uma gargalhada. Keynes entrou ainda tonto, sem compreender o que afinal era isso, preferiu ir abraçar Adorno, que olhou desconfiado para seu acompanhante mas o cumprimentou cordialmente. 
O andar da noite trouxe ares mais frios. Ricardo fez grande sucesso, ainda que tenha sido pouco compreendido por alguns do lado direito da rua. Evidentemente Von Mises achou o discurso tímido e sussurrou a Hayek que teria sido melhor se Popper falasse. Sua prosa, afinal, era tediosa mas mais dura. Os mais ricos não se conformavam com a demora, tinha muita conversa e pouca ação. Mesmo no purgatório eles preferiam acompanhar a dança de Wall Street e tinham inspirado alguns investimentos em derivativos cambiais para incautos. A dicas tinham vindo do andar de baixo ao purgatório, mas eles nunca se importaram com isso...
Do outro lado, já havia acontecido dois incidentes com feridos. Sem se aguentar, Lênin xingara Rosa Luxemburgo e Keynes, no que foi surpreendido por uma defesa cavalheiresca de Delors e, pasmem, de Marcuse. Trotsky afastou Lênin que, inconformado, disse que desejaria saber por onde andava o idiota chinês que tinha feito uma marcha tão longa para terminar ajudando como líder do capitalismo mundial. Engels, que já chegara, disse que Mao e Deng foram vistos do lado de fora, mas um conjunto de fantasmas do exército vermelho havia impedido sua entrada. Lênin riu de forma incontida e foi convidar Gramsci para uma partida de xadrez: "a partida entre ocidente e oriente, Antonio; você sempre foi um dos meus preferidos, ainda que o ache tímido". Sartre ensaiou explicações sobre o nada, mas foi repelido suavemente por ninguém menos que Rousseau: "o senhor poderia, por favor, parar com isso? Não sei para que essa conversa sobre o nada, o outro e o inferno serve. Poderíamos tratar de questões públicas relevantes por favor? O que o senhor pensa da razão e sua aplicação no campo dos negócios humanos? O governo deve representar  afinal ,a vontade geral? E, gentil senhor, onde está aquela senhora simpática que esteve anos convosco?". Surpreso, Merleau-Ponty saiu para o lado e foi despedir-se de Lukács.
Ao saírem das festas era por volta das 5 horas de um novo dia no purgatório e os grupos se encontraram. Olhares enojados de ambos os lados. Keynes se escondeu, porque havia sido convidado para duas festas. Marx não se conteve e chamou por Mill e Smith que foram até ele cumprimentá-lo. Os socialistas do pós-guerra confraternizaram-se com alguns intelectuais americanos, mas mantiveram cuidadoso afastamento de banqueiros. Ao fim todos foram embora em carruagens. Não houve confronto físico, para decepção do trôpego Yeltsin e do cozinheiro Stálin. Todos seguiram sua jornada. 

Na vida real a disputa é outra, e não tem tido o mesmo fim amigável. Os conselhos vindos do andar abaixo do purgatório tem proliferado de ambos os lados. O andar acima tem laboriosamente se calado. As nuvens de 2008 não saíram do horizonte, mas os lucros e bônus voltaram a subir, a farra da desregulação permanece e as tentativas contra políticas de bem-estar crescem. A festa no lado direito da rua tem seus seguidores, muitos pobremente conscientes de quem são os personagens. Mas a festa do lado esquerdo tem menos personagens a olhar para ela. Eles preferem o convite ao lado direito ouvindo os conselhos vindos do andar abaixo do purgatório. Eles flertam com a barbárie e podem ver o cenário pintado por Marx na festa: pode ser que tudo desmorone. E pode ser que o restante também fracasse. E, se fracassar, a barbárie é um consolo improvável. É hora da esquerda voltar para o lado da rua que lhe compete, com todas as suas diferenças.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Caminhos e descaminhos do PIB - uma breve reflexão

Sempre que o IBGE publica dados sobre o produto interno bruto (PIB) do Brasil a imprensa apressas-se a divulgar seus resultados - normalmente com manchetes negativas: Folha, Estado de SP, Globo, Zero Hora, Correio Brasiliense, Estado de Minas. De todos os links, apenas o do Estado de Minas tem manchete mais "neutra".  O mais significativo foi o pequeno crescimento trimestral de 0,5% ante o trimestre anterior puxado pelos gastos das famílias.
O PIB é uma medida criada na década de 30 por Samuel Kusnets, sendo a soma de todas as riquezas nacionais por todos os setores mensuradas em valores monetários e em determinado período (ano, semestre, trimestre, etc.). Observe, por favor,  o gráfico abaixo, que representa o crescimento do PIB (US$ e não ajustado pela inflação) dos BRICS entre 1960  e 2011:
  
 Não estamos no inferno, não é? Até porque, estranho, somente não expandimos mais que a China.

Agora, comparemos  o Brasil com alguns vizinhos na "latinoamerica", também em US$ e não deflacionado:


 Não é curioso? Não tão fracos assim não é?


O clássico dos neoclássicos, Alfred Marshall, escreveu que era muito importante afastar-se das árvores e ver a floresta. Até um pouco treinado olho para dados observa a diferença e o momento de "descolamento"do Brasil - 2002-2005. A variação para cima na metade dos anos de 1990 no Brasil representa o crescimento com vôo rasante proporcionado pela estabilidade do "plano real", depois retornando a curva para baixo até 2002.
Mas, sejamos justos. Vamos observar o dado segundo a renda nacional medida em "paridade poder de compra" (PPC), o que ajusta as diferenças de preços entre os países:


 Mudou muito?

Não, permanece o  Brasil em posicão relevante e de liderança isolada - quase 4 Argentinas e 9 Chiles, se me permitem.

Finamente, vamos ver um dado "negativo" para o Brasil - a renda bruta em termos per capita:

 Poderia ser melhor não?


Vamos escolher três países para comparar. Entre 2000 e 2011 o Brasil teve um crescimento populacional de 12,6%, o PIB per capita cresceu 68,6%; no Chile, a população ampliou-se 11,6% e o PIB per capita 81,3%. Que isso quer dizer? Per capita opera em relação a população e o Chile vem mantendo este crescimento vigoroso. O Brasil teve um crescimento populacional não tão distinto, mas o PIB per capita quase 13% menor. O caso do México é mais diferencial: população ampliando-se em 15% enquanto o PIB per capita avançou 80,4%, quase o mesmo do Chile. Para ilustrar a diferença de indicadores temporais, se tomarmos uma serie mais curta - começando em 2004 e chegando a 2011 - o Chile permanece destacado com crescimento per capita de outros 81% (população = +7,2%), o Brasil passa ao segundo (47%, população= +6,9%) e o Mexico cresce menos per capita: 35% (população aumentando 9,2%). Claro deve ficar que não estamos discutindo a economia de cada país, mas apenas renda per capita e produto. O Chile permanece forte e o México perdeu terreno em 8 anos. No gráfico como um todo, Brasil e Chile apresentaram curvas mais "generosas", a Venezuela flutuou muito mais e a Argentina sofreu o desmonte de sua crise entre 1999 e 2002, para depois recuperar-se com força. O efeito "fundo do poço"de seu PIB(em 2002) promoveu um vigoroso crescimento posterior. Para se ter uma ideia do estrago na Argentina, o PIB de 2008 era apenas ligeiramente maior que o de 2000.  Chile vai bem? Sim, dentro dos limites de sua economia bem adaptada à demanda internacional. O Brasil vai ao desastre? Nem de perto, nem vamos tão mal assim. O que poderia acontecer era um crescimento mais vigoroso. O Mexico inspira muito mais cuidados, inclusive devido a sua quase total dependência do mercado norte -americano e à longevidade da crise nos EUA.

Mas os dados são prisioneiros dos conceitos. PPC também significa considerar as diferenças de custo de vida entre os países, aproximando-os para efeito comparativo. O mesmo vale para o PIB. Medir a renda per capita, por sua vez, requer sempre a lembrança de que esta é proporcional a população. Como na maioria dos dados, séries temporais importam mais que dados isolados, sendo o curto prazo um dado enganoso. Dizer que o PIB brasileiro cresce "apenas" 0,6% em um trimestre e compará-lo com outro países é enganoso e pouco importante pelo menos por três motivos: o primeiro é a própria dinâmica interna de cada um, outra são as estupendas diferenças entre as economias nacionais e a terceira é o efeito de curto prazo, normalmente sazonal e menos significativo. É sempre preciso lembrar que, se observarmos Brasil e Chile em termos de complexidade econômica, o Chile é formidavelmente menos diversificado que o Brasil e nosso déficit histórico de concentração da renda é motivo suficiente para observarmos ambos com mais cuidado. 

O PIB é muito criticado porque não diferencia entre o que é produtivo ou devastador - uma guerra, os rendimentos não monetários, não reflete o desemprego ou a desigualdade, não diferencia o investimento de bem estar dos conflitos armados. Ele é filho do entre-guerras e do forte crescimento do pós-guerra, a medida de sua notoriedade também vem destes momentos. Ainda que criticado, medidas como "desenvolvimento humano" não se impõem como mensuração para contabilidade nacional. 

Por que toda esta narrativa? Porque a imprensa comporta-se sobre o PIB exatamente como comporta-se com a economia em geral: toma o aparente pelo certo, o sazonal pelo total e o "negativo" antes que o ponderado. O crescimento atual foi tímido? Com certeza. Precisamos de mais. Mas seria prudente observar outros indicadores combinados - juros, câmbio, inflação, desemprego, taxa de investimento e formação de capital fixo - para maior ponderação. Exercitar a paciência para efeitos futuros também seria de bom tom. E já que existem países sendo comparados, fazer o mesmo em relação a eles. Mas isto daria muito trabalho aos jornalistas "econômicos", que preferem o molho do caos ao tempero da inteligência.

domingo, 19 de agosto de 2012

Cultura ilustrada, valores universais e um mundo estreito - uma descida ao inferno



Alguns autores são senhores da cultura e lordes da escrita, em cada época controlam o sentimento do mundo à sua volta e tomam o pulso do universo político-cultural. A lista é extensa e (como tudo que importa) não se curva às ideologias ou ao mero juízo desinformado. Trata-se de uma estirpe de dramaturgos, romancistas, filósofos - de Shakespeare a Marlowe, de Dante a Boccaccio, de Voltaire a Montaigne e Carlyle, de Ésquilo a Sófocles, de Camões a Machado, de Dickens a Poe, de Goethe a Musil e Mann.  Não importa o período, antes vale a prosa ou o verso. Sua plena beleza precisa ser captada em sua língua nacional, o que somente aumenta a responsabilidade dos tradutores que, ao recontarem a história, devem conseguir manter a senhoria da cultura em boa forma.  
Não sei o que vem sendo feito nos bancos de aula com a literatura; a julgar pelo que as Universidades recebem é muito pouco.  O mesmo tem que ser dito sobre a história, uma forma de narrativa obrigatória a qualquer intelectual e base da formação de identidade no tempo para compreender a comum herança da  humanidade e as particularidade nacionais.  A literatura é uma base importantíssima para a escrita, mas seu cultivo parece vir decrescendo; o gosto pela história parece seguir o mesmo caminho. E nem estou contando com uma noção espacial bem definida: onde as nações se localizam, sob  que céu se organizam, como se caracterizam.
No passado nem tão remoto, o conceito de humanismo não havia desaparecido em parte das elites. Muitas profissões liberais, como médicos e advogados, cultivavam bibliotecas; professores de áreas distintas operavam a capacidade de compreender história. Conhecia-se a distribuição espacial do mundo e discorria-se com alguma capacidade sobre temas da ciência e da cultura geral. Mas, como típico das elites brasileiras, isto também era modelo para segmentação social e reforço da estratificação; o caráter diferenciador em relação à "malta" (termo usado no início da República) e aos pobres desprovidos de cultura. Em outras palavras, apropriava-se da herança comum da humanidade como sua, negando ao outro seu papel de agente.
A redemocratização brasileira produziu um outro fenômeno. Neste campo, resvalamos para a outra ponta. As disciplinas clássicas foram " remontadas" - do específico para o geral, da conjuntura para a estrutura, do "erudito" para o "popular". Em nome da valorização do local, da etnia, da absoluta diferença, vigoraria a marca da distinção. Isto poderia funcionar? Sim, desde que  aquilo que fosse reconhecido como universal, herança comum, cultura no sentido da compreensão dos grandes, recebesse o status que merece. Não foi que aconteceu.
Este debate era mais vivo nos anos de 1980. Um livro de Sergio Paulo Rouanet -  "Razões do Iluminismo"  (Cia. das Letras, 1984) -é um bom exemplo disso. Em um capítulo intitulado "Verde-Amarela é a Cor do Nosso Irracionalismo", depois de criticar uma cultura onde se valorizaria em excesso a "broa de milho" (uma crítica ao então ministro da Cultura Aloisio Pimenta que falava nesse termo para realçar o "popular"), Rouanet faz uma bela defesa do iluminismo, da racionalidade informada e das criações culturais cuja expressão do belo ultrapassam classes e fronteiras, como a própria literatura, o ballet, a pictografia e as artes em geral. Ensinar e debater o universal não poderia ser substituído pela reconstrução de um saber popular que superasse uma cultura que ultrapassava fronteiras de grupo. 
Os defensores da postura de valorização do "popular" existem até hoje e estão em muitas posições. Afirmam que, ao defender o conhecimento do "povo", defendem uma identidade "massacrada", "obscurecida", "dominada". Que não pretendem abandonar outras expressões, mas este "popular" tem a mesma dimensão que a "arte das elites". Uma bobagem fruto de uma leitura canhestra do popular e das elites, daqueles adoradores do enquadramento; uma visão torta da classe, confundida com o popular.
Wolfgang Amadeus Mozart, por exemplo. Onde ele está? Em determinado momento a ópera não era diversão das elites, ela se tornou de elite por uma construção social específica. Mozart a escrevia em alemão, não em italiano que era a língua escolhida pelas elites para a ópera; ele a fazia com temas cotidianos, não em uma corte afastada do mundo. O livro de Elias "Mozart - A sociologia de um gênio" (Jorge Zahar) ajuda a compreender isso à sua moda. 
A grande pergunta é como o termo "cultura popular", expressão que já na partida hierarquiza-se em relação ao mundo, pode chegar a se opor tão fortemente à "alta cultura".? Esta última também se hierarquiza, mas do outro lado. Esta passa a ser a cultura das elites, negada dia a dia aos mais pobres, como se deles também não fosse, como se eles não participassem de sua história. Esta é a grande armadilha que parte da esquerda aceitou: defender o local, regional, popular contra a invasão da literatura, da pintura, da dança, da música como de "elite" e como se ela realmente o fosse. Os "progressistas" abandonaram a dialética e a substituíram pela lógica aristotélica tradicional: o local é forte e importante, quem faz cultura local é importante, logo cultura local é o mais forte. Mas onde o local se encontra com o universal? Aliás, como Mozart, o que foram Shakespeare, Balzac ou Machado? Cultura das elites? Só para quem viu os livros apenas empoeirando em alguma biblioteca. Quem os leu sabe a que me refiro. Aliás, o insuspeito Marx, o autor de muitos livros mais citados que lidos, escreveu algumas (poucas) paginas sobre isso na "Contribuição Para a Crítica da Economia Política" quando refere-se a arte e suas conexões passado-presente.
Suspeito que estamos diante de uma crescente redução do espaço da cultura. Em nome do particular, perde-se o universal; em nome do local, perde-se o global e em nome de relações no espaço público amplia-se de forma geométrica o espaço privado e seus interesses. Uma formação cada vez mais afastada de valores universais reforça o individualismo. A raiz republicana do universal, o espaço coletivo onde se constrói a unidade da nação e do sentimento de pertencimento ao mundo do humano, a derradeira marca iluminista e humanista,  é substituída por estranhos pertencimentos localizados na "comunidade". As consequências disso vão do fundamentalismo religioso aos guetos intelectuais. Se a verdade revelada encontra-se em um livro, porque me preocupar com os outros? Se a cultura a minha volta é tão forte e podemos dispensar a formação do legado cultural universalista, por que me preocupar com este último? E temos a praga do relativismo multiculturalista, igualizando tudo de forma acrítica.
Então, o último ato. O encaminhamento para o silêncio do fundo do palco, a rota para a amnésia derivada do abandono do passado. Ao contrário do que imaginam os incautos, Margareth Thatcher venceu poucas batalhas com sua cruzada liberal, mas duas são decisivas: a derrota dos sindicatos na Grã Bretanha e a guerra de opinião em nome do individualismo. Este ultraindividualismo penetrou na sociedade com todo vigor nos anos 90, transformando trajetórias individuais em " únicas" - "minha carreira", "meus sonhos", " minha poesia"- a história de cada um tem validade e todos falam de si. Como escrevi em outro post, olinks com o mundo compartilhado estão mudando de local - para a internet e solidariedades "locais" - desfazendo-se dos laços de classe e introduzindo apenas os laços do extemporâneo - de movimentos anti aumento de passagem de ônibus até muitos occupy mundo afora.  Hoje há uma geração que tem pressa, que perde a experiência em nome apenas de si. A formação cultural ganhou ares de "qualquer coisa" porque existe uma cultura ilustrada que deslocou-se ao fundo do palco. Quando a formação de capital cultural deslocou-se para o "meu conhecer", para "minha comunidade", compartilhar o humano foi interditado pelo que há de forte no mundo "local" que reage ao global. 
Paradoxalmente este cenário é de um mundo que optou por comunicação instantânea, velocidade de informação e deslocamento para o espaço global. Uma simples passeio pela internet mostra como cada um fala de si em suas páginas, seus amigos e suas citações de auto-ajuda. Praga contemporânea da informação, auto-ajuda é a combinação de religiosidade patética, estupidez filosófica e capacidade para o vulgar, mixadas para produzir frases e títulos. A apropriação medíocre de Sun Tzu pelos gênios da administração, das receitas de personagens deploráveis como Lee Iacoca, Jack Wash ou coisa pior, passando por "Jesus, o maior psicólogo que já existiu", o insuportável "quem mexeu no meu queijo?" e todo o lixo sobre bruxas e magos recentemente renascidos convive com a insuportável leveza necessária para compreender como as comunidades isoladas são lindas e tem tanto a nos ensinar, como as curandeiras tem sabedoria popular e como devemos olhar tudo como expressão sublime. Ficou mais fácil admirar o comum. Alguns movimentos recentes de cultura popular resvalam com rapidez para o kitsch, na expressão de Moles.
Enquanto valores " locais" e particulares ganham espaço por toda parte, em uma defesa da "democracia cultural", a herança de quem melhor captou e capta o sentimento do mundo vai sendo retirada para um saber secundário, criticado como de "elite". E com isso, esta defesa torna-se conservadora, mas é também muito mais reacionária. Lembro aos incautos que há uma diferença importante entre conservadores e reacionários no pensamento político: o primeiro prefere, na prosa de Michael Oakeshot, o certo ao errado, o certo ao duvidoso, a preferência pelo conhecido. O reacionário é algo mais terrível, da reação a Revolução Francesa: reagir e voltar ao passado. Muitos homens e mulheres de esquerda comportam-se como seguidores de de Maistre: preferem voltar para a identidade conhecida, valorizar a estreiteza comunitária, impedir o conhecimento da cultura "burguesa". Também não se diferenciam muito do stalinismo. Peço desculpas a quem prefere locupletar-se com banalidades religiosas de qualquer natureza,auto-ajuda ou escritores "locais" e suas comunidades, mas ainda prefiro Shakespeare, Marlowe, Dante, Boccaccio, Voltaire, Montaigne, Carlyle, Ésquilo, Sófocles, Camões, Machado, Dickens, Poe, Goethe, Musil, Mann e tantos outros como referências. A democracia cultural deveria ser o legado universal e as referências universais, não os estreitos limites da vida miserável e do elogio da pobreza. 
Conhecer o entorno, as comunidades, expressões particulares, tudo isto é absolutamente relevante. Mas como isto se conecta com o mundo? Como isso dialoga com a cultura ilustrada universalista? Esta é a chave, e formuladores de políticas culturais e educacionais deveriam pensar nelas. 
Mas isso supõe que esses formuladores também detenham esta visão e a capacidade de interpretação proporcionada por nossa herança universal. Pode ser uma cruzada difícil ...

P.S.: Como nota adicional e expressão do "eu" sublime, vivemos em um país onde uma diminuta parte da elite (?) elege colunista de jornal como membro de academia de letras, mesmo que escreva  textos onde dois terços são menções a terceiros, sem nenhuma originalidade ou o mais remoto valor literário. Pobre fantasma de Machado, em tão má companhia ... 

domingo, 12 de agosto de 2012

Sobre lembrança e esquecimento: o hino soviético, Lênin e Londres 2012

Para Vladimir Lenin,  mesmo desconfiando que ele odiaria, 

Para amigos dos anos 80 e para alguns mais novos.


Mas quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fieis, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo como almas, lembrando, aguardando, esperando sobre as ruinas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação
Marcel Proust - No Caminho de Swan (p.51, Editora Globo)


Hoje pela manhã foi a final olímpica de vôlei entre Rússia e Brasil, com uma memorável vitória russa por 3x2 sobre o forte time brasileiro. Terminado o jogo, na premiação, aumentei o volume da TV e ouvi algo que tinha esquecido que ainda existia: o hino da Rússia permanece sendo o da antiga União Soviética, que por sua vez é o eco da antiga Internacional. Não sei por que, depois de tantos anos de mudança e reconstrução, de muro caído, parlamentos bombardeados, estátuas derrubadas, de presidente trôpego e ex agente da KGB, parece que somente dois elementos sobraram: a múmia na Praça Vermelha e, para o canto esquecido da minha memória, o hino. 
Na Olimpíada de Barcelona (1992) ocorreu a primeira competição sem a velha URSS. Na ocasião um ginasta de origem bielorussa competiu pela ficção territorial chamada Comunidade de Estados Independentes: seu nome é Vitaly Scherbo. Em uma de suas tétricas coberturas televisivas, a Rede Globo escalou o "grande" poeta contemporâneo Pedro Bial para uma "crônica", onde este senhor declamava tendo por imagem de fundo  a cena com Scherbo nas argolas na posição de Cristo e depois chorando ao ouvir o hino, o mesmo do qual comecei  falando. Na interpretação do "notável" jornalista, com a imagem congelada na posição de Cristo, ele definia: o atleta estava prestando homenagem, com seu choro, a um deus morto. Qual? Claro: era o comunismo.
Hoje me recordei desta cena depois de sentir uma pontada de emoção ao ouvir o hino. Antes que algum desavisado critique, não tenho saudades da velha Rússia Soviética, do modus operandi stalinista, dos pogrons, campos ou algo parecido. É que às vezes os entulhos da história permanecem. Entre a década de 80 e 90 houve uma larga oferta de varredura para o esquecimento do que foi o movimento socialista, onde ele atuou, quem ele ajudou a liberar, que sonhos cultivou. Muitos socialistas e comunistas estiveram à frente de movimentos de libertação nacional no antigo "terceiro mundo", na África e na América de língua espanhola. Em experiências frustradas no Chile de Allende, no fim da ditadura de Baby Doc Duvalier ou em Cuba. Há um poema de Neruda apontando que os comunistas, que mais combateram tantas ditaduras, foram jogados depois no fundo do palco. Os herdeiros da tradição socialista, mas não comunista, afiançaram a democracia europeia depois da guerra (na Alemanha, França, Itália) e foi muito importante sua ação em Portugal (1974) quando os cravos substituíram as baionetas em uma das mais belas transições que se tem notícia. Estes últimos não eram leninistas, o líder soviético com sua retórica inflamada os denominaria antes de "chauvinistas".  Até isso tem história - a grande querela de Lênin com Kautsky e o SPD.
A Rússia bolchevique pretendia ser uma espécie de refúgio para a utopia comunista. Mas ela fracassou redondamente, seja pelo insucesso econômico e a incapacidade em produzir sinalizadores claros de preços, pela institucionalização precária das organizações, pelo estado que reunia em si todos os poderes e pela incapacidade em compreender mutações que foram do estado de bem-estar aos ventos liberais dos anos 80. Lênin escreveu ao fim de "O Estado e a Revolução" que era muito mais prazeiroso fazer a revolução que escrever sobre ela. A experiência histórica do comunismo soviético mostrou que era muito mais terrível dirigir o atraso que escrever sobre ele.
Entretanto, a defesa do esquecimento é um programa terrível. Afinal, como esquecer a heroica batalha de Stalingrado e o papel que o exercito vermelho desempenhou a despeito de quem o liderava? Os sacrifícios do país invadido à época ainda da revolução pelas potências ocidentais e os esforços de industrialização? Quantos conhecem a epopeia de Trotsky no exílio, sua perseguição implacável pelo regime stalinista, a perseguição de um brilhante intelectual do "desenvolvimento desigual e combinado", base da internacionalização e depois das justificativas para revoluções fora do centro capitalista?
Talvez a minha geração, que estava na Universidade nos anos 80, tenha sido a última que conhecia a formidável biografia de Trotsky por Isaac Deutscher, o "programa de transição" de Trotsky, discutia Lênin e Marx/Engels em suas obras completas publicadas pela Alfa-Ômega, citava as " Teses de Abril", juntava dos sebos textos do Edtorial Escorpião de Portugal ou editoras pequenas gerando edições despedaçadas dos "Manuscritos de 44", com fragmentos sobre a alienação do trabalho. Alguns com mais sorte escapavam do dogmatismo e viam Gramsci como uma luz diferente no túnel e tentavam, sinceramente, transformar o excepcional intelectual multifacetado que foi Walter Benjamin em marxista. Aqui lembro tudo de forma esparsa. Houve uma geração antes, na década de 1970 no Brasil, para quem o grande nome foi Lukács e a crítica da cultura era revelada por Adorno, Horkheimer ou  Marcuse. A esquerda dos 80, da "abertura política" brasileira, compartilharam o desejo de entender os ventos de mudança que sopravam no país com leituras clássicas e marxistas um tanto "abertos", caso do americano Marshall Berman e "tudo que é sólido desmancha no ar", livro surpreendente muito lido aqui e que pouco interesse despertou em quase toda parte. Os anos de 1990 marcaram o entusiasmo por autores como Habermas, os "marxistas analíticos" de diferentes matizes (pois Roemer e Elster são diferentes de Olie Wright e Przeworski) e os debates sobre a vitalidade do marxismo ou sua defenestração ao reino da "teoria do conhecimento". O final dos 80 e início dos 90 são a era da "crise de paradigmas nas ciência sociais", dos textos de Alexander e da divulgação forte de Thomas Kuhn. 
O fracasso do comunismo histórico é o fracasso de Lenin? Do leninismo conforme ele se desdobrou pelo mundo sim, do stalinismo com absoluta certeza. Com eles também se foi Trotsky. Com perdão do trocadilho (se pensarmos em " Que Fazer?"), o que ficou? A utopia do comunismo deve a Lenin tanto o sucesso como o fracasso. O sucesso da revolução de 25 de outubro, uma revolução acompanhado pelas multidões com a promessa generosa de "as terras para os camponeses, as fábricas para os operários, paz e prosperidade para os povos". E de fracasso stalinista pelos campos de prisioneiros, pelos pogrons, pela ineficácia econômica. Não foi o "início do fim das classes", como escreveu Marx em seu programa pós revolucionário, mas a construção de uma distopia. Entretanto, não é possível diminuir a presença histórica de Lenin.
Foi muito triste identificar um legado distópico em um programa de esperança. Grande parte daqueles que defendem hoje a herança de Lenin apresentam uma irracionalidade da política como fim em si mesma, reinterpretando a mensagem de "Que Fazer" em um partido ou organização com uma visão instrumental da democracia e deslocada da realidade, convertendo a revolução no mesmo fenômeno da miragem do deserto: quanto mais eles se aproximam do ponto, mais ela se desfaz. Muito poucos, opacos, tornaram-se irrelevantes no cenário político de todas as nações, democráticas ou não, limitando-se a gritar a plenos pulmões e tornando-se roufenhos com o passar do tempo, como se o Palácio do Planalto sequer tivesse a grandeza do Palácio de Inverno, exagerando a ironia.
O pior é que este comportamento não serve no combate ao esquecimento. O mundo contemporâneo cultiva uma amnésia societal que atinge a geração atual. Tudo se dá, após a hecatombe liberal entre os anos 80 e o início de 2000, como uma invenção atual: profissionais e jovens comportando-se como se o mundo estivesse começando com suas vidas. O ultraindividualismo, o grande legado de Thatcher, imiscuiu-se para a esquerda, inclusive naquilo que muitos creem ser projetos coletivos. Isto vai da "minha carreira" ao "meu sucesso", de minha (e de mais ninguém) trajetória e da história de cada um. Os links com o mundo compartilhado estão mudando de local - para a internet e solidariedades "locais" - desfazendo-se dos laços de classe e introduzindo apenas os laços do extemporâneo - de movimentos anti aumento de passagem de ônibus até muitos occupy mundo afora. Até greves tornaram-se expressões do "eu" totalitário, da "minha vida", como se o jogo tivesse um round e não múltiplas rodadas. Hoje há uma geração que tem pressa, que perde a experiência em nome apenas de si. 
Talvez seja preciso recuperar Lenin, mas não para uma caricatura dele mesmo. Contra o ultraindividualismo, o "espontaneísmo" das praças e a "doença infantil do esquerdismo", Lênin faz falta. Em outro contexto, o insuspeito Norberto Bobbio escreveu um texto no livro "Depois da Queda" (Paz e terra, 1992, p. 20) algo que aponta para uma questão central:
A democracia, devemos admitir, superou o desafio do comunismo histórico. Mas, de que meios e ideais dispõe para enfrentar os mesmo problemas que deram origem ao desafio comunista? ... Como disse o poeta: "Agora que já não temos bárbaros, que será de nós sem bárbaros?"  
 Em algum tempo pode ser que ninguém tenha nenhum rasgo de emoção ao ouvir o hino da velha União Soviética e seus ecos da Internacional. Ou não saiba exatamente o que foi aquilo e que história teve. Será um dia triste.

P.S.: A Olimpíada de Londres terminou e, na festa de encerramento, lá estava o "fantasma" de Freddie Mercury no telão regendo a multidão, bem como os vastos cabelos brancos de Brian May (como o tempo passou desde o Rock In Rio 85 que vi) dedilhando uma das melhores guitarras de todos os tempos. Lenin detestaria, mas como ainda é bom ouvir o som pop-rock do "Queen". Sorry, herdeiros do leninismo de caserna, melhorem o humor.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

A comédia humana eleitoral

Estamos iniciando a subida da montanha, movimento que estará concluído em 07 de outubro quando serão escolhidos o executivo e e o legislativo nos municípios brasileiros. Como se sabe, é um dos mais vastos pleitos do mundo, com um eleitorado gigantesco espalhado pelo país, expressiva liberdade de organização partidária, de manifestação de opinião e direito de voto. Este último começa em 16 anos e permite o voto dos analfabetos, sendo obrigatório a partir de 18 anos.  E cada pleito lança em todos os lares aquilo que alguns acham ser uma grande inovação da democracia brasileira, ainda que criada pelos governos militares: o horário eleitoral dito gratuito. Registre-se que a imprensa, que tem a síndrome de sentir-se ameaçada em sua liberdade quando fala-se ou escreve-se qualquer coisa contra a excessiva concentração de seu poder, publica o que lhe apetece, divulga as pesquisas que quer - e quando quer - e tem editoriais críticos, ainda que não se tenha notícia de veículos de circulação nacional (com exceção da Carta Capital) que manifeste-se a favor de um candidato.Outra "formidável" inovação é a presença de uma justiça eleitoral que interfere, determina, multa, eventualmente prende, sob a justificativa de fiscalizar e aplicar a lei eleitoral, ainda, e mais uma vez, outra inovação criteriosa, aliás invariavelmente modificada quase sempre. Finalmente, não se pode acusar todo o processo por ausência de discussão: em breve teremos espetáculo e participação: quando o tal horário de TV e rádio se iniciar, quando estivermos próximos de 30 dias para o pleito, as esquinas, bares, festas, aulas, na casa e na rua somente se falará disso. Imagens serão construídas e desconstruídas, tramas e dramas serão narrados, risos serão atirados contra os absurdos, o dilema entre o nacional e o local será digladiado e cada candidato ao executivo virá com  a peça de ficção mais cara das eleições, o tal "programa de governo". Os candidatos ao legislativo debatem-se na virulenta dispersão de votos e são espremidos pelo voto proporcional, tendendo a concentrar-se em confusas intenções, a maioria inconstitucionais e sem vínculo com a vereança, acreditando em duendes e no inevitável juízo de que, tendo dez parentes, cada um poderá trazer mais dez votos, que por sua vez trará outros cinco e assim por diante, contando também com seu esforço pessoal. Assim ele poderá apertar cerca de 10.000 mil mãos direitas em dois meses (e alguns dias) e assim produzir 2.000 votos, uma eficácia estupenda da ordem de 20%, conhecendo 154 pessoas a cada dia. Não é chiste ou folclore, pois todos aqueles que frequentaram alguma campanha, ou acompanharam um candidato a vereador, sabem que esta aritmética, ou "progressão", é muito mais trivial do que se pensa. Seguindo a lógica da teoria do mercado eleitoral, sendo todos racionais e buscando a mesma coisa, claro que todos desejarão apertar as tais dez mil mãos, todos tem parentes e, em havendo, por exemplo, 411 candidatos em uma cidade como Juiz de Fora (MG), cada candidato, apertando 10.000 mãos, teríamos 4.100.000 mãos apertadas em um município com 370.000 eleitores. São 11 vezes mais mãos direitas apertadas que eleitores. O pobre eleitor terá que ser importunado muitas vezes, ouvir promessas vãs e inconstitucionais e terá que escolher, finalmente, 1. Este candidato, dominado pelo calor da disputa, não computa as traições parentais, incluídas as esposas ou esposos e filhos, nem o indescritível sofrimento para atender aos interesses da coligação, aquela agrura para o índice partidário podendo obter os 2,4 ou 5.000 votos e, ainda assim, amargar a derrota.
Neste cenário muitos reclamam do processo? Raramente, até porque a eleição é um momento do encontro do eleitor com a política e com temas caros à sua vida cotidiana, eleitores gostam da eleição e são contagiados por ela. Reclamações são pouco consequentes, pois, após o protesto inicial, logo a a mesma pessoa estará desfiando juízos sobre A ou B. Cenas de desprezo pela política, ataques virulentos aos políticos que se espraiam no cotidiano operam um encantamento quando próximos a um pleito: "corruptos", "ladrões", "todos iguais", tornam-se candidatos"! O sentimento geral permanece, mas a eleição sensibiliza, irrita, empolga, transforma o debate politico na ordem do dia. Neste momento surgem votos que incomodam: Tiririca, Zé das Couves, Pardal, Tico Tico, Fulano do Sindicato, Sicrano da Escola tal, toda esta mixórdia terrível de letras mal aparatadas entram na vida dos eleitores. Mas não passa pela cabeça de ninguém contestar o resultado, "virar a mesa". Candidatos a vereança são também a linha de frente para ofertar a grande entidade eleitoral que com eles conta como uma infantaria: o candidato ao Paço Municipal.
Sua excelência (o candidato a prefeito) tem soluções mágicas, algumas também irrealizáveis. Como a reeleição é permitida, candidatos no cargo - um evidente problema no universo kafkiano da legalidade eleitoral - divertem-se propondo obras que não fizeram e temas que não trataram, ocultam o aumento do IPTU ou de alguma taxa estapafúrdia, e, considerando que exista alguma intencionalidade republicana, querem uma cidade "limpa", "verde" ou algo que às vezes parece um adjetivo: "cidadã". Pouco importa, porque os demais candidatos veem que tudo que foi feito não serve, as políticas (??) devem ser substituídas e sempre é possível controlar a tarifa de ônibus e os "apetites animais" dos mais afoitos.
Não importa muito se há um enredo de Ionesco em cada eleição, ou mesmo lances shakespearianos de Ricardo III. O eleitor estará lá para escolher, brigar, debater, impor valores e intenções, tornar-se o especialista, enfim participar. Se puder dramatizar o processo, melhor. Campanhas são feitas de uma matéria onde surgem boatos ("vai mudar a lei tal, ouvi de alguém"), mentiras ("este aí votou o fim do 13º salário, me disseram"), pessoas murmurando boatos e mentiras pelos pontos de ônibus ou dentro de coletivos, e, claro, também verdades - denúncias coerentes, propostas eventualmente realistas, identidade com parte importante do eleitorado. Como no pleito para o Legislativo ninguém ousa pensar em denunciar o resultado ou não aceitá-lo.
Estranho caso: durante quase 4 anos, fala-se mal da política. No intervalo de algo como 70 dias, a eleição ganha corpo e respeito junto ao eleitorado, que participa do debate como nunca e mesmo diverte-se com a festa nas ruas, na TV, no rádio e até na internet, mas também nos salões paroquiais, nas praças, nos comícios. Não tem música ao vivo com grupos populares? Que nada, o próprio candidato pode cantar. Não tem outdoor? Não tem problema, a justiça chega para determinar o tamanho da placa permitida. E os indefectíveis, inúteis e mal escritos " santinhos", que tanto dinheiro dão às gráficas? Circulam como nunca, não informam ninguém, mas incomodam mais pela sujeira que pelo conteúdo, eventualmente divertido.
É inegável que o Brasil já tem o ciclo eleitoral naturalizado, em outras palavras ele rotinizou as eleições. Mas ao contrário de regimes democráticos mais antigos, ele não a transformou em ritualística pura. O eleitor aprecia o embate e quer dele participar. Mais, a vida política nas instituições eleitorais é suficientemente institucionalizada para operar conflitos e mediar questões variadas. A maturação lenta da democracia vai se consolidando. Pode-se tentar explicar isso pela cultura política. Em minha opinião, a cultura política vem operando um grau de institucionalidade e festa que tem sido satisfatório ao Brasil. Repetem-se candidatos? Sim. Alguns são ruins? Sim. Mas, se fossem outros o processo também existiria e seria a mesma diversão. O futuro mudará isso? Quem sabe? 
Eleição é festa, de alguma maneira pouco compreendida pela vetusta análise que deveria explicar o processo. O problema não está em um eleitor que doma sua paixão pela razão (ele não o faz), no homem apático que não vê nada na politica (mas, ele não gosta de participar?), no " ignorante" que não distingue "bom" de "ruim" (mas, para quem seria "bom" ou "ruim"?), na pouca alfabetização ou em pouco desenvolvimento. A questão profunda é que os processos agregados às eleições indicam a vitalidade da política em meio a um mar de renúncias do espaço público, mostram uma racionalidade instrumental combinada a uma emocionalidade única, indicam que é sempre possível discutir problemas públicos em situações públicas. Prazer, humor, rotatividade ou continuidade, frustração e alegria. O resultado é consequência. Ao fim, todos voltam para casa, vencedores e derrotados, mas sem ninguém pensar em ruptura institucional. Em quatro anos, ou em dois, haverá mais. 

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Sobre heterodoxia, Keynes e o mainstream econômico

Em alguns círculos é moda defenestrar o passado. Quando o tempo passa, alguns efeitos vão se multiplicando: esquecimento, abandono, mudança de perspectiva, perda de visibilidade ... . Nem sempre se tem notícia da permanência. Da permanência e não da mera sobrevivência. 
Sobreviver é triste pela precariedade, pela incerteza. Deve-se preferir, em algum nível, a permanência. Algumas disciplinas científicas a exercitam com maestria, outras a substituem pela ansiedade e a velocidade do presente. Entre elas está a Economia em seu formato mainstream (em oposição à Economia Política) e a ela não filiam-se as Ciências Sociais, a História, a Filosofia ou, para alguns uma surpresa, a Física ou a Matemática. Alguns ramos da Ciência Política flertam com esta visão de Economia; se a primeira abastardou-se da Matemática, a segunda pretende ser uma bastarda da economia planilhada? Esta observação nada tem de fobia matemática, pelo contrário, uma vez que esta é essencial ferramenta científica, meio analítico e de prova na maioria das ciências. Modelos econométricos e seus dummy, multiplicadores e funções tornaram-se explicadores da complexidade do mundo simplificando-o em seus próprios termos, crendo explicar desde as curvas de crescimento até os movimentos dos mercados futuros e derivativos. Seu lugar relevante é o mercado, sua glória e seu desastre surgem quando é absolutizado. Uma lógica do presente e do futuro, não do "acontecido".
Houve muitos intelectuais-economistas importantes, quando a Economia Política preservava um status diferenciado. Não exatamente "puros" economistas, mas intérpretes da complexidade do mundo pela lógica da Sociologia Econômica, da própria Economia Politica, da História Econômica. Os cursos permanecem "obrigando" seus alunos a conhecer List, Gerschenkron, Veblen, Polanyi, passando pelo filósofo moral que foi Adam Smith, pela crueza de Ricardo, pelo tenebroso mundo de Malthus (que valeu à economia o epíteto de "ciência triste", segundo Carlyle), a critica devastadora de Marx, a elegância de Stuart Mill e Weber? E que falar de Keynes, o intelectual e operador econômico, e da provocante contradição em Schumpeter? E, para ouvir o "outro lado", as diatribes de Mises, a ironia de Pareto e o atavismo liberal de Hayek? Poderia crescer a lista e ela está adjetivada propositalmente. Qual o problema? Tudo se passa como se a história da ciência dispensasse adjetivos e eles fossem criminosos. Seriam, se tomados como a única fonte de argumentação, mas aqui eles pretendem ajudar a sintetizar preocupações.
Alguém se lembra da lista de Prêmios Nobel de Economia nos últimos 42 anos? Desde sua primeira oferta em 1969? Claro, um ou outro. Mas a persistência da lógica identitariamente econométrica mostra que apenas as grandes diferenças chamam atenção: Amartya Sen é o único, desde 1974, ano em que Gunnar Myrdal venceu, que explicitamente foi justificado como "economia do bem-estar". Por ironia, este ano de 1974 foi o  mais peculiar: junto a Myrdal, o vencedor foi Friedrich Hayek. Economistas institucionalistas e estudos de regulação tiveram importantes vitórias com o honorável Coase (91), Stigler em 82 e Simon em 78; estudos sobre assimetria de informação venceram com Mirrleess e Vickrey (96) e com Stiglitz/Spencer/Ackerlof em 2001; explicitamente sobre desenvolvimento, Schultz/Lewis, em 79. Um economista mais crítico, Krugman, venceu em 2010. Correndo o risco de pequenas imprecisões, em 8 dos últimos 42 anos houve prêmios menos "ortodoxos"; a premiação privilegiou estudos microeconômicos, análise de mercado, teoria dos jogos, estratégia de decisão e similares. Sem passado, sem história, sem medo do futuro... Isto sendo generoso: assimetria de informação não prescinde de modelística, muito menos comércio internacional.
Por mais problemas que o Prêmio possa ter em seus critérios, é a mais cantada lista do mundo. E, sem dúvida, os nomes citados são representativos desta ciência. O recuo para o fundo do palco da formação em economia denominada heterodoxa é patente por toda parte. Sua heterodoxia não reside em fobia matemática, sua resistência é sobre a  idolatria econométrica, seu peculiar desprezo pela história e o descaso com a teoria social no sentido das Ciências Sociais. O problema é que o desafio científico da interpretação é o que importa, e muitos de nós sabem que interpretar, de forma puramente endógena a uma área de conhecimento, é o caminho para o  desastre: perde-se perspectiva, profundidade e historicidade. Não é o caso dos heterodoxos, na maioria dos casos, e dos cientistas sociais
Talvez a grande referência da heterodoxia seja John Maynard Keynes, intelectual refinado, funcionário público inglês, promotor de saraus em companhia de Virginia Woolf, crítico da guerra e ... economista. Não exatamente somente economista politico, mas o fundador da macroeconomia. O texto de Robert Skidelsky sobre ele (a biografia em 3 volumes da Penguin Books) ainda deve ser a grande referência. Seu biógrafo enfatizou que o autor, estudante em Cambridge,  tinha especial dedicação às humanidades, em particular Filosofia e estudos clássicos, paixão que operaria em conjunto com a Economia mas com especial esmero pela primeira em relação a segunda. Sua notável "Teoria Geral" (no Brasil pelas Editora Atlas ou Relógio Dágua) é um texto de um economista, mas não é preciso ter esta formação para admirá-lo exatamente porque Keynes ultrapassa fronteiras. A sugestão de leitura do capítulo 24, "Notas finais sobre a filosofia social a que poderia levar a teoria geral' e do Livro II ("Definições e Ideias") merece ser vista por qualquer cientista social, No capítulo mencionado (p.291 na edição brasileira da Atlas), nosso economista  e amigo da Filosofia alerta:
... as ideias dos economistas e filósofos políticos, estejam elas certas ou erradas, tem mais importância do que geralmente se percebe. De fato, o mundo é governado por pouco mais do que isso. Os homem que se julgam livres de qualquer influência intelectual são, em geral, escravos de algum economista defunto ... a força dos interesses escusos se exagera muito em comparação com a penetração das ideias.  ... Cedo ou tarde, são as ideias, e não os interesses escusos, que representam um perigo, seja para o bem ou para o mal.
Este foi (é) Keynes. Prefere Friedman ou Mises? Azar! Você não sabe o que está perdendo.