domingo, 8 de fevereiro de 2015

A esquerda na terra da distopia conservadora: em defesa do abandono das teorias conservadoras da crise e da governabilidade

        Escrevi neste espaço dois textos anteriores: o primeiro sobre fatos da conjuntura, mais horizontal e sobre elementos cotidianos; outro tematizando a formação de uma nova direita, aquela que funde o tema do conservadorismo ético-moral com rasgos de liberalismo econômico. Esta aproxima-se de uma composição ideológica nascida na década de 80 mas com traços particulares ligados às nossas estrutura de classes e formação econômico-social. Seu desenvolvimento recente guarda relação direta com a trajetória da centro-esquerda no comando do Estado, assinalando o contraditório após alterações importantes no tecido social. Impaciente com mudanças e afastada do núcleo decisório sobre políticas públicas, ela busca transformar  o cenário em uma crise sem fim - uma realidade distópica - com a tradicional ação da grande imprensa familiar e a atividade deletéria das forças anti-Estado e do individualismo possessivo. Se há uma nova direita, cada vez mais consolidada, forças políticas no governo comportam-se como derrotadas, ainda que, pelo menos formalmente, tenham vencido as eleições presidenciais. Creio que optar por tratar da questão em termos de direita/esquerda não é empobrecedor, simplificador ou lugar comum, é uma opção de análise entre outras. Por isso cabe perguntar: diante de uma nova direita, existe uma nova esquerda?
Não, a resposta mais simples e direta é esta. As forças partidárias organizadas a esquerda não tem estado à altura da realidade. No que tem de tradicional, não compreendem a dinâmica contemporânea da juventude, da sociedade de massas tecnologizada, da resistência organizacional e de uma classe trabalhadora mais diversificada e com mediações em uma cultura mais fortemente individualizada e mesmo competitiva. Tem dificuldades em absorver novos setores médios que, por mais que tenham emergido nos últimos anos, tendem a se comportar como se isto fosse fruto exclusivo de seu esforço individual- sem nenhum apoio das políticas públicas estatais de inclusão . Diante da ofensiva combinada de um discurso moralista vazio e da "incompetência" do Estado “corrupto” e  “ineficiente”, nossa esquerda brada apenas valores coletivos contra a desigualdade. O problema é que a raiz individualista e o narcisismo, combinados com a mercadorização completa, operam contra ela, convertendo valores coletivos em distantes e a compra da última novidade em algo mais premente.
Podemos tentar aprender com a história. Tomemos o caso onde a centro-esquerda levou a cabo uma reforma civilizatória de primeira ordem: a Europa ocidental. A reconstrução europeia do segundo pós-guerra (uma trajetória, em alguns países, iniciada ainda antes) deve muito à antiga social-democracia europeia e sua adesão aos valores democráticos e reformistas. Ela produziu dois movimentos combinados de notável repercussão: a redução da desigualdade, da pobreza e dos males sociais mais comuns, por um lado, e, por outro, combinou notavelmente a lógica do crescimento econômico com equidade. O fato do risco de pobreza, uma estatística europeia importante, haver sido drasticamente reduzido entre os anos de 1950 a 1980, mesmo em países como o Reino Unido, não é nada desprezível, bem como a universalização de serviços públicos de qualidade é um referencial que permanece mesmo hoje, tempos difíceis de austeridade. A ainda muito presente (infelizmente) década de 90 alterou muito o ambiente político-econômico, particularmente pela globalização financeira e produtiva aprofundadas. Deslocando unidades inteiras de produção para a Ásia, a maior beneficiária, e ampliando a mobilidade de capitais por todo o mundo, as políticas market friendly passaram ao ataque contra estruturas de bem-estar. A Europa ocidental resistiu mais ou menos bem a isso, remodelando e ajustando seu sistema de proteção social … até a crise de 2008. Neste momento, a centro-esquerda europeia realizou seu dobre de finados: ao invés de enfrentar a maré, em uma crise criada pelo grande capital financeiro e seus desdobramentos nas unidades produtivas dominadas pela tesouraria, optou por dedicar-se a assumir o discurso da direita conservadora, como se fosse a esquerda a culpada pela crise. Suas vitórias, poucas, eram acompanhadas de medidas de austeridade e, onde ela estava no poder aplicando as mesmas medidas conservadoras, foi derrotada - caso de Portugal, Espanha ou  Grécia. A esperança na vitória de Hollande na França, o insistente contraponto geopolítico à Alemanha dentro da União Europeia, foi a maior decepção. O Euro determinou o caminho e todos lá se foram - contra sua tradição, todos os sinais de alerta e o próprio agravamento da questão social.
A América Latina seguiu um caminho inverso e tem resultados melhores. Mas, que importa? Para as forças de centro-esquerda brasileiras mais próximas ao poder a campanha foi de continuidade - e agora sua prática tem sido mais "francesa" que qualquer outra coisa. Emparedada por um discurso hostil e “udenista”, uma imprensa conservadora golpista, uma classe média tradicional incomodada, a resposta tem sido reafirmar valores econômicos rentistas e austeridade fiscal a qualquer preço. Afastando-se de suas bases de apoio, o governo isola-se no Palácio, não tem porta-voz, não disputa o jogo político falando “para fora” e parece acuado pela selvageria da nova direita. Esta centro-esquerda, incapaz de sair da armadilha de governabilidade, não consegue mobilizar setores de apoio mais amplos - entre jovens, uma classe trabalhadora renovada, setores médios emergentes ou mesmo apoiadores tradicionais. queima as pontes em direção à sociedade em nome da austeridade em um movimento - sem o Euro - como aquela da França, da Espanha, de Portugal, da Grécia … .
A esquerda carrega seus valores e seu programa, nunca é demais relacioná-los. Ao meu juízo, o combate a desigualdade; tributação progressiva sobre a renda (incluindo tributos sobre grandes fortunas); políticas públicas inclusivas, gestão econômica combinando equidade e eficiência; alto nível de regulação com um Estado ativo e operoso; um mercado operante e ativo, mas com freios e contrapesos; a propriedade privada em função social e não um valor absoluto,; serviços públicos em escala compatível com a qualidade e em função da cidadania, no limite buscando universalidade; compromissos com o setor produtivo e seu ator-chave, o empresariado, em função de estímulos condicionados a emprego e crescimento; o diálogo com os setores organizados na sociedade em fóruns adequados e a capacidade em estruturar demandas à esquerda nos setores emergentes;  Neste sentido o que parece estar envelhecido não é o programa, mas muito mais as práticas e as operações políticas. As conservadoras teorias da crise e da governabilidade terão sempre uma decisão primária e única: a estratégia conservadora na fórmula de rentismo + austeridade / - investimento social e na produção, freando a queda da desigualdade e ameaçando o emprego sem produzir crescimento. Pode trazer tranquilidade pelo lado da finança, mas com um alto preço em relação aos resultados econômico-sociais e ao apoio politico das forças de centro-esquerda na sociedade. A aliança frágil do governo com os setores comprometidos com as reformas de interesse popular corre perigo sem resultados e sem ação; pela inação do próprio governo. 
Neste momento somente um lado fala, combate, ataca. É uma luta sem adversário,  o país  como distopia. Do desmonte da Petrobrás ao congresso, das notícias ruins sobre preços e a erosão de confiança, a nova direita não perdeu um único round deste novembro. É preciso reagir e reconstruir as pontes com nossa história e as lutas e conquistas recentes; mudar a linguagem, superando a esquerda de caserna que atrai apenas os disponíveis para uma jihad social (pouquíssimos); passar a atuar com ferramentas tecnológicas mais efetivas; restabelecer o debate cm sindicatos e organizações e estreitar laços com setores menos estruturados mas sensíveis à pauta de esquerda.  Restabelecer um diálogo social fortalecido com interlocutores abertos ao diálogo e em instituições com empoderamento suficiente para influir na agenda - o contrário do que o governo Dilma fez no primeiro mandato e vem insistindo agora. Enfrentar o debate com a mídia e disputar espaços sociais  por uma hegemonia que reaja ao poder da nova direita. Não seria ousado dizer que, para a principal expressão desse grupo no poder, o PT precisa ser refundado. E que o governo pare, agora, de errar no dia a dia, na conjuntura mais comezinha: na Petrobrás, no setor elétrico, na falta de um porta-voz que cotidianamente enfrente a agenda negativa e na desastrosa busca por uma governabilidade medíocre diante de um congresso hostil. Reconstruir a base de apoio é agregar no Congresso forças de diálogo, não forças de pura barganha. Solto no ar, sem apoio externo e sem capacidade parlamentar as chances de um "golpe paraguaio” aumentam dramaticamente. Que o governo entenda que sustentar a própria mídia não a levará a contemporizar e que precisa melhorar sua estratégia de comunicação. Que explique de que forma a "austeridade" vai produzir bem-estar, se isto for possível!. Quanto mais fraca a atuação, quanto mais isolado e inoperante, mais o governo fortalece a fisiologia , a oposição e os aliados de ocasião.  E, por outro lado,  mais seus apoios na sociedade minguam.
A conjuntura muitas vezes desperta a impaciência do leitor ou até do analista. Nesta série resta ainda a necessidade de escrever um texto relacionando nosso cenário com a cena internacional. Ao leitor é dado perder a paciência e acreditar que análises são inefetivas, os textos carregados; ao analista isso não é permitido. Como aqui importa a análise, por mais que estejamos em um esforço enorme para interpretar a pantanosa conjuntura, ao leitor que não goste só me cabe o pedido de desculpas. Há também sempre outras plagas a explorar, se assim desejar.


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