quinta-feira, 9 de agosto de 2012

A comédia humana eleitoral

Estamos iniciando a subida da montanha, movimento que estará concluído em 07 de outubro quando serão escolhidos o executivo e e o legislativo nos municípios brasileiros. Como se sabe, é um dos mais vastos pleitos do mundo, com um eleitorado gigantesco espalhado pelo país, expressiva liberdade de organização partidária, de manifestação de opinião e direito de voto. Este último começa em 16 anos e permite o voto dos analfabetos, sendo obrigatório a partir de 18 anos.  E cada pleito lança em todos os lares aquilo que alguns acham ser uma grande inovação da democracia brasileira, ainda que criada pelos governos militares: o horário eleitoral dito gratuito. Registre-se que a imprensa, que tem a síndrome de sentir-se ameaçada em sua liberdade quando fala-se ou escreve-se qualquer coisa contra a excessiva concentração de seu poder, publica o que lhe apetece, divulga as pesquisas que quer - e quando quer - e tem editoriais críticos, ainda que não se tenha notícia de veículos de circulação nacional (com exceção da Carta Capital) que manifeste-se a favor de um candidato.Outra "formidável" inovação é a presença de uma justiça eleitoral que interfere, determina, multa, eventualmente prende, sob a justificativa de fiscalizar e aplicar a lei eleitoral, ainda, e mais uma vez, outra inovação criteriosa, aliás invariavelmente modificada quase sempre. Finalmente, não se pode acusar todo o processo por ausência de discussão: em breve teremos espetáculo e participação: quando o tal horário de TV e rádio se iniciar, quando estivermos próximos de 30 dias para o pleito, as esquinas, bares, festas, aulas, na casa e na rua somente se falará disso. Imagens serão construídas e desconstruídas, tramas e dramas serão narrados, risos serão atirados contra os absurdos, o dilema entre o nacional e o local será digladiado e cada candidato ao executivo virá com  a peça de ficção mais cara das eleições, o tal "programa de governo". Os candidatos ao legislativo debatem-se na virulenta dispersão de votos e são espremidos pelo voto proporcional, tendendo a concentrar-se em confusas intenções, a maioria inconstitucionais e sem vínculo com a vereança, acreditando em duendes e no inevitável juízo de que, tendo dez parentes, cada um poderá trazer mais dez votos, que por sua vez trará outros cinco e assim por diante, contando também com seu esforço pessoal. Assim ele poderá apertar cerca de 10.000 mil mãos direitas em dois meses (e alguns dias) e assim produzir 2.000 votos, uma eficácia estupenda da ordem de 20%, conhecendo 154 pessoas a cada dia. Não é chiste ou folclore, pois todos aqueles que frequentaram alguma campanha, ou acompanharam um candidato a vereador, sabem que esta aritmética, ou "progressão", é muito mais trivial do que se pensa. Seguindo a lógica da teoria do mercado eleitoral, sendo todos racionais e buscando a mesma coisa, claro que todos desejarão apertar as tais dez mil mãos, todos tem parentes e, em havendo, por exemplo, 411 candidatos em uma cidade como Juiz de Fora (MG), cada candidato, apertando 10.000 mãos, teríamos 4.100.000 mãos apertadas em um município com 370.000 eleitores. São 11 vezes mais mãos direitas apertadas que eleitores. O pobre eleitor terá que ser importunado muitas vezes, ouvir promessas vãs e inconstitucionais e terá que escolher, finalmente, 1. Este candidato, dominado pelo calor da disputa, não computa as traições parentais, incluídas as esposas ou esposos e filhos, nem o indescritível sofrimento para atender aos interesses da coligação, aquela agrura para o índice partidário podendo obter os 2,4 ou 5.000 votos e, ainda assim, amargar a derrota.
Neste cenário muitos reclamam do processo? Raramente, até porque a eleição é um momento do encontro do eleitor com a política e com temas caros à sua vida cotidiana, eleitores gostam da eleição e são contagiados por ela. Reclamações são pouco consequentes, pois, após o protesto inicial, logo a a mesma pessoa estará desfiando juízos sobre A ou B. Cenas de desprezo pela política, ataques virulentos aos políticos que se espraiam no cotidiano operam um encantamento quando próximos a um pleito: "corruptos", "ladrões", "todos iguais", tornam-se candidatos"! O sentimento geral permanece, mas a eleição sensibiliza, irrita, empolga, transforma o debate politico na ordem do dia. Neste momento surgem votos que incomodam: Tiririca, Zé das Couves, Pardal, Tico Tico, Fulano do Sindicato, Sicrano da Escola tal, toda esta mixórdia terrível de letras mal aparatadas entram na vida dos eleitores. Mas não passa pela cabeça de ninguém contestar o resultado, "virar a mesa". Candidatos a vereança são também a linha de frente para ofertar a grande entidade eleitoral que com eles conta como uma infantaria: o candidato ao Paço Municipal.
Sua excelência (o candidato a prefeito) tem soluções mágicas, algumas também irrealizáveis. Como a reeleição é permitida, candidatos no cargo - um evidente problema no universo kafkiano da legalidade eleitoral - divertem-se propondo obras que não fizeram e temas que não trataram, ocultam o aumento do IPTU ou de alguma taxa estapafúrdia, e, considerando que exista alguma intencionalidade republicana, querem uma cidade "limpa", "verde" ou algo que às vezes parece um adjetivo: "cidadã". Pouco importa, porque os demais candidatos veem que tudo que foi feito não serve, as políticas (??) devem ser substituídas e sempre é possível controlar a tarifa de ônibus e os "apetites animais" dos mais afoitos.
Não importa muito se há um enredo de Ionesco em cada eleição, ou mesmo lances shakespearianos de Ricardo III. O eleitor estará lá para escolher, brigar, debater, impor valores e intenções, tornar-se o especialista, enfim participar. Se puder dramatizar o processo, melhor. Campanhas são feitas de uma matéria onde surgem boatos ("vai mudar a lei tal, ouvi de alguém"), mentiras ("este aí votou o fim do 13º salário, me disseram"), pessoas murmurando boatos e mentiras pelos pontos de ônibus ou dentro de coletivos, e, claro, também verdades - denúncias coerentes, propostas eventualmente realistas, identidade com parte importante do eleitorado. Como no pleito para o Legislativo ninguém ousa pensar em denunciar o resultado ou não aceitá-lo.
Estranho caso: durante quase 4 anos, fala-se mal da política. No intervalo de algo como 70 dias, a eleição ganha corpo e respeito junto ao eleitorado, que participa do debate como nunca e mesmo diverte-se com a festa nas ruas, na TV, no rádio e até na internet, mas também nos salões paroquiais, nas praças, nos comícios. Não tem música ao vivo com grupos populares? Que nada, o próprio candidato pode cantar. Não tem outdoor? Não tem problema, a justiça chega para determinar o tamanho da placa permitida. E os indefectíveis, inúteis e mal escritos " santinhos", que tanto dinheiro dão às gráficas? Circulam como nunca, não informam ninguém, mas incomodam mais pela sujeira que pelo conteúdo, eventualmente divertido.
É inegável que o Brasil já tem o ciclo eleitoral naturalizado, em outras palavras ele rotinizou as eleições. Mas ao contrário de regimes democráticos mais antigos, ele não a transformou em ritualística pura. O eleitor aprecia o embate e quer dele participar. Mais, a vida política nas instituições eleitorais é suficientemente institucionalizada para operar conflitos e mediar questões variadas. A maturação lenta da democracia vai se consolidando. Pode-se tentar explicar isso pela cultura política. Em minha opinião, a cultura política vem operando um grau de institucionalidade e festa que tem sido satisfatório ao Brasil. Repetem-se candidatos? Sim. Alguns são ruins? Sim. Mas, se fossem outros o processo também existiria e seria a mesma diversão. O futuro mudará isso? Quem sabe? 
Eleição é festa, de alguma maneira pouco compreendida pela vetusta análise que deveria explicar o processo. O problema não está em um eleitor que doma sua paixão pela razão (ele não o faz), no homem apático que não vê nada na politica (mas, ele não gosta de participar?), no " ignorante" que não distingue "bom" de "ruim" (mas, para quem seria "bom" ou "ruim"?), na pouca alfabetização ou em pouco desenvolvimento. A questão profunda é que os processos agregados às eleições indicam a vitalidade da política em meio a um mar de renúncias do espaço público, mostram uma racionalidade instrumental combinada a uma emocionalidade única, indicam que é sempre possível discutir problemas públicos em situações públicas. Prazer, humor, rotatividade ou continuidade, frustração e alegria. O resultado é consequência. Ao fim, todos voltam para casa, vencedores e derrotados, mas sem ninguém pensar em ruptura institucional. Em quatro anos, ou em dois, haverá mais. 

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