quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Sobre heterodoxia, Keynes e o mainstream econômico

Em alguns círculos é moda defenestrar o passado. Quando o tempo passa, alguns efeitos vão se multiplicando: esquecimento, abandono, mudança de perspectiva, perda de visibilidade ... . Nem sempre se tem notícia da permanência. Da permanência e não da mera sobrevivência. 
Sobreviver é triste pela precariedade, pela incerteza. Deve-se preferir, em algum nível, a permanência. Algumas disciplinas científicas a exercitam com maestria, outras a substituem pela ansiedade e a velocidade do presente. Entre elas está a Economia em seu formato mainstream (em oposição à Economia Política) e a ela não filiam-se as Ciências Sociais, a História, a Filosofia ou, para alguns uma surpresa, a Física ou a Matemática. Alguns ramos da Ciência Política flertam com esta visão de Economia; se a primeira abastardou-se da Matemática, a segunda pretende ser uma bastarda da economia planilhada? Esta observação nada tem de fobia matemática, pelo contrário, uma vez que esta é essencial ferramenta científica, meio analítico e de prova na maioria das ciências. Modelos econométricos e seus dummy, multiplicadores e funções tornaram-se explicadores da complexidade do mundo simplificando-o em seus próprios termos, crendo explicar desde as curvas de crescimento até os movimentos dos mercados futuros e derivativos. Seu lugar relevante é o mercado, sua glória e seu desastre surgem quando é absolutizado. Uma lógica do presente e do futuro, não do "acontecido".
Houve muitos intelectuais-economistas importantes, quando a Economia Política preservava um status diferenciado. Não exatamente "puros" economistas, mas intérpretes da complexidade do mundo pela lógica da Sociologia Econômica, da própria Economia Politica, da História Econômica. Os cursos permanecem "obrigando" seus alunos a conhecer List, Gerschenkron, Veblen, Polanyi, passando pelo filósofo moral que foi Adam Smith, pela crueza de Ricardo, pelo tenebroso mundo de Malthus (que valeu à economia o epíteto de "ciência triste", segundo Carlyle), a critica devastadora de Marx, a elegância de Stuart Mill e Weber? E que falar de Keynes, o intelectual e operador econômico, e da provocante contradição em Schumpeter? E, para ouvir o "outro lado", as diatribes de Mises, a ironia de Pareto e o atavismo liberal de Hayek? Poderia crescer a lista e ela está adjetivada propositalmente. Qual o problema? Tudo se passa como se a história da ciência dispensasse adjetivos e eles fossem criminosos. Seriam, se tomados como a única fonte de argumentação, mas aqui eles pretendem ajudar a sintetizar preocupações.
Alguém se lembra da lista de Prêmios Nobel de Economia nos últimos 42 anos? Desde sua primeira oferta em 1969? Claro, um ou outro. Mas a persistência da lógica identitariamente econométrica mostra que apenas as grandes diferenças chamam atenção: Amartya Sen é o único, desde 1974, ano em que Gunnar Myrdal venceu, que explicitamente foi justificado como "economia do bem-estar". Por ironia, este ano de 1974 foi o  mais peculiar: junto a Myrdal, o vencedor foi Friedrich Hayek. Economistas institucionalistas e estudos de regulação tiveram importantes vitórias com o honorável Coase (91), Stigler em 82 e Simon em 78; estudos sobre assimetria de informação venceram com Mirrleess e Vickrey (96) e com Stiglitz/Spencer/Ackerlof em 2001; explicitamente sobre desenvolvimento, Schultz/Lewis, em 79. Um economista mais crítico, Krugman, venceu em 2010. Correndo o risco de pequenas imprecisões, em 8 dos últimos 42 anos houve prêmios menos "ortodoxos"; a premiação privilegiou estudos microeconômicos, análise de mercado, teoria dos jogos, estratégia de decisão e similares. Sem passado, sem história, sem medo do futuro... Isto sendo generoso: assimetria de informação não prescinde de modelística, muito menos comércio internacional.
Por mais problemas que o Prêmio possa ter em seus critérios, é a mais cantada lista do mundo. E, sem dúvida, os nomes citados são representativos desta ciência. O recuo para o fundo do palco da formação em economia denominada heterodoxa é patente por toda parte. Sua heterodoxia não reside em fobia matemática, sua resistência é sobre a  idolatria econométrica, seu peculiar desprezo pela história e o descaso com a teoria social no sentido das Ciências Sociais. O problema é que o desafio científico da interpretação é o que importa, e muitos de nós sabem que interpretar, de forma puramente endógena a uma área de conhecimento, é o caminho para o  desastre: perde-se perspectiva, profundidade e historicidade. Não é o caso dos heterodoxos, na maioria dos casos, e dos cientistas sociais
Talvez a grande referência da heterodoxia seja John Maynard Keynes, intelectual refinado, funcionário público inglês, promotor de saraus em companhia de Virginia Woolf, crítico da guerra e ... economista. Não exatamente somente economista politico, mas o fundador da macroeconomia. O texto de Robert Skidelsky sobre ele (a biografia em 3 volumes da Penguin Books) ainda deve ser a grande referência. Seu biógrafo enfatizou que o autor, estudante em Cambridge,  tinha especial dedicação às humanidades, em particular Filosofia e estudos clássicos, paixão que operaria em conjunto com a Economia mas com especial esmero pela primeira em relação a segunda. Sua notável "Teoria Geral" (no Brasil pelas Editora Atlas ou Relógio Dágua) é um texto de um economista, mas não é preciso ter esta formação para admirá-lo exatamente porque Keynes ultrapassa fronteiras. A sugestão de leitura do capítulo 24, "Notas finais sobre a filosofia social a que poderia levar a teoria geral' e do Livro II ("Definições e Ideias") merece ser vista por qualquer cientista social, No capítulo mencionado (p.291 na edição brasileira da Atlas), nosso economista  e amigo da Filosofia alerta:
... as ideias dos economistas e filósofos políticos, estejam elas certas ou erradas, tem mais importância do que geralmente se percebe. De fato, o mundo é governado por pouco mais do que isso. Os homem que se julgam livres de qualquer influência intelectual são, em geral, escravos de algum economista defunto ... a força dos interesses escusos se exagera muito em comparação com a penetração das ideias.  ... Cedo ou tarde, são as ideias, e não os interesses escusos, que representam um perigo, seja para o bem ou para o mal.
Este foi (é) Keynes. Prefere Friedman ou Mises? Azar! Você não sabe o que está perdendo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário