domingo, 19 de agosto de 2012

Cultura ilustrada, valores universais e um mundo estreito - uma descida ao inferno



Alguns autores são senhores da cultura e lordes da escrita, em cada época controlam o sentimento do mundo à sua volta e tomam o pulso do universo político-cultural. A lista é extensa e (como tudo que importa) não se curva às ideologias ou ao mero juízo desinformado. Trata-se de uma estirpe de dramaturgos, romancistas, filósofos - de Shakespeare a Marlowe, de Dante a Boccaccio, de Voltaire a Montaigne e Carlyle, de Ésquilo a Sófocles, de Camões a Machado, de Dickens a Poe, de Goethe a Musil e Mann.  Não importa o período, antes vale a prosa ou o verso. Sua plena beleza precisa ser captada em sua língua nacional, o que somente aumenta a responsabilidade dos tradutores que, ao recontarem a história, devem conseguir manter a senhoria da cultura em boa forma.  
Não sei o que vem sendo feito nos bancos de aula com a literatura; a julgar pelo que as Universidades recebem é muito pouco.  O mesmo tem que ser dito sobre a história, uma forma de narrativa obrigatória a qualquer intelectual e base da formação de identidade no tempo para compreender a comum herança da  humanidade e as particularidade nacionais.  A literatura é uma base importantíssima para a escrita, mas seu cultivo parece vir decrescendo; o gosto pela história parece seguir o mesmo caminho. E nem estou contando com uma noção espacial bem definida: onde as nações se localizam, sob  que céu se organizam, como se caracterizam.
No passado nem tão remoto, o conceito de humanismo não havia desaparecido em parte das elites. Muitas profissões liberais, como médicos e advogados, cultivavam bibliotecas; professores de áreas distintas operavam a capacidade de compreender história. Conhecia-se a distribuição espacial do mundo e discorria-se com alguma capacidade sobre temas da ciência e da cultura geral. Mas, como típico das elites brasileiras, isto também era modelo para segmentação social e reforço da estratificação; o caráter diferenciador em relação à "malta" (termo usado no início da República) e aos pobres desprovidos de cultura. Em outras palavras, apropriava-se da herança comum da humanidade como sua, negando ao outro seu papel de agente.
A redemocratização brasileira produziu um outro fenômeno. Neste campo, resvalamos para a outra ponta. As disciplinas clássicas foram " remontadas" - do específico para o geral, da conjuntura para a estrutura, do "erudito" para o "popular". Em nome da valorização do local, da etnia, da absoluta diferença, vigoraria a marca da distinção. Isto poderia funcionar? Sim, desde que  aquilo que fosse reconhecido como universal, herança comum, cultura no sentido da compreensão dos grandes, recebesse o status que merece. Não foi que aconteceu.
Este debate era mais vivo nos anos de 1980. Um livro de Sergio Paulo Rouanet -  "Razões do Iluminismo"  (Cia. das Letras, 1984) -é um bom exemplo disso. Em um capítulo intitulado "Verde-Amarela é a Cor do Nosso Irracionalismo", depois de criticar uma cultura onde se valorizaria em excesso a "broa de milho" (uma crítica ao então ministro da Cultura Aloisio Pimenta que falava nesse termo para realçar o "popular"), Rouanet faz uma bela defesa do iluminismo, da racionalidade informada e das criações culturais cuja expressão do belo ultrapassam classes e fronteiras, como a própria literatura, o ballet, a pictografia e as artes em geral. Ensinar e debater o universal não poderia ser substituído pela reconstrução de um saber popular que superasse uma cultura que ultrapassava fronteiras de grupo. 
Os defensores da postura de valorização do "popular" existem até hoje e estão em muitas posições. Afirmam que, ao defender o conhecimento do "povo", defendem uma identidade "massacrada", "obscurecida", "dominada". Que não pretendem abandonar outras expressões, mas este "popular" tem a mesma dimensão que a "arte das elites". Uma bobagem fruto de uma leitura canhestra do popular e das elites, daqueles adoradores do enquadramento; uma visão torta da classe, confundida com o popular.
Wolfgang Amadeus Mozart, por exemplo. Onde ele está? Em determinado momento a ópera não era diversão das elites, ela se tornou de elite por uma construção social específica. Mozart a escrevia em alemão, não em italiano que era a língua escolhida pelas elites para a ópera; ele a fazia com temas cotidianos, não em uma corte afastada do mundo. O livro de Elias "Mozart - A sociologia de um gênio" (Jorge Zahar) ajuda a compreender isso à sua moda. 
A grande pergunta é como o termo "cultura popular", expressão que já na partida hierarquiza-se em relação ao mundo, pode chegar a se opor tão fortemente à "alta cultura".? Esta última também se hierarquiza, mas do outro lado. Esta passa a ser a cultura das elites, negada dia a dia aos mais pobres, como se deles também não fosse, como se eles não participassem de sua história. Esta é a grande armadilha que parte da esquerda aceitou: defender o local, regional, popular contra a invasão da literatura, da pintura, da dança, da música como de "elite" e como se ela realmente o fosse. Os "progressistas" abandonaram a dialética e a substituíram pela lógica aristotélica tradicional: o local é forte e importante, quem faz cultura local é importante, logo cultura local é o mais forte. Mas onde o local se encontra com o universal? Aliás, como Mozart, o que foram Shakespeare, Balzac ou Machado? Cultura das elites? Só para quem viu os livros apenas empoeirando em alguma biblioteca. Quem os leu sabe a que me refiro. Aliás, o insuspeito Marx, o autor de muitos livros mais citados que lidos, escreveu algumas (poucas) paginas sobre isso na "Contribuição Para a Crítica da Economia Política" quando refere-se a arte e suas conexões passado-presente.
Suspeito que estamos diante de uma crescente redução do espaço da cultura. Em nome do particular, perde-se o universal; em nome do local, perde-se o global e em nome de relações no espaço público amplia-se de forma geométrica o espaço privado e seus interesses. Uma formação cada vez mais afastada de valores universais reforça o individualismo. A raiz republicana do universal, o espaço coletivo onde se constrói a unidade da nação e do sentimento de pertencimento ao mundo do humano, a derradeira marca iluminista e humanista,  é substituída por estranhos pertencimentos localizados na "comunidade". As consequências disso vão do fundamentalismo religioso aos guetos intelectuais. Se a verdade revelada encontra-se em um livro, porque me preocupar com os outros? Se a cultura a minha volta é tão forte e podemos dispensar a formação do legado cultural universalista, por que me preocupar com este último? E temos a praga do relativismo multiculturalista, igualizando tudo de forma acrítica.
Então, o último ato. O encaminhamento para o silêncio do fundo do palco, a rota para a amnésia derivada do abandono do passado. Ao contrário do que imaginam os incautos, Margareth Thatcher venceu poucas batalhas com sua cruzada liberal, mas duas são decisivas: a derrota dos sindicatos na Grã Bretanha e a guerra de opinião em nome do individualismo. Este ultraindividualismo penetrou na sociedade com todo vigor nos anos 90, transformando trajetórias individuais em " únicas" - "minha carreira", "meus sonhos", " minha poesia"- a história de cada um tem validade e todos falam de si. Como escrevi em outro post, olinks com o mundo compartilhado estão mudando de local - para a internet e solidariedades "locais" - desfazendo-se dos laços de classe e introduzindo apenas os laços do extemporâneo - de movimentos anti aumento de passagem de ônibus até muitos occupy mundo afora.  Hoje há uma geração que tem pressa, que perde a experiência em nome apenas de si. A formação cultural ganhou ares de "qualquer coisa" porque existe uma cultura ilustrada que deslocou-se ao fundo do palco. Quando a formação de capital cultural deslocou-se para o "meu conhecer", para "minha comunidade", compartilhar o humano foi interditado pelo que há de forte no mundo "local" que reage ao global. 
Paradoxalmente este cenário é de um mundo que optou por comunicação instantânea, velocidade de informação e deslocamento para o espaço global. Uma simples passeio pela internet mostra como cada um fala de si em suas páginas, seus amigos e suas citações de auto-ajuda. Praga contemporânea da informação, auto-ajuda é a combinação de religiosidade patética, estupidez filosófica e capacidade para o vulgar, mixadas para produzir frases e títulos. A apropriação medíocre de Sun Tzu pelos gênios da administração, das receitas de personagens deploráveis como Lee Iacoca, Jack Wash ou coisa pior, passando por "Jesus, o maior psicólogo que já existiu", o insuportável "quem mexeu no meu queijo?" e todo o lixo sobre bruxas e magos recentemente renascidos convive com a insuportável leveza necessária para compreender como as comunidades isoladas são lindas e tem tanto a nos ensinar, como as curandeiras tem sabedoria popular e como devemos olhar tudo como expressão sublime. Ficou mais fácil admirar o comum. Alguns movimentos recentes de cultura popular resvalam com rapidez para o kitsch, na expressão de Moles.
Enquanto valores " locais" e particulares ganham espaço por toda parte, em uma defesa da "democracia cultural", a herança de quem melhor captou e capta o sentimento do mundo vai sendo retirada para um saber secundário, criticado como de "elite". E com isso, esta defesa torna-se conservadora, mas é também muito mais reacionária. Lembro aos incautos que há uma diferença importante entre conservadores e reacionários no pensamento político: o primeiro prefere, na prosa de Michael Oakeshot, o certo ao errado, o certo ao duvidoso, a preferência pelo conhecido. O reacionário é algo mais terrível, da reação a Revolução Francesa: reagir e voltar ao passado. Muitos homens e mulheres de esquerda comportam-se como seguidores de de Maistre: preferem voltar para a identidade conhecida, valorizar a estreiteza comunitária, impedir o conhecimento da cultura "burguesa". Também não se diferenciam muito do stalinismo. Peço desculpas a quem prefere locupletar-se com banalidades religiosas de qualquer natureza,auto-ajuda ou escritores "locais" e suas comunidades, mas ainda prefiro Shakespeare, Marlowe, Dante, Boccaccio, Voltaire, Montaigne, Carlyle, Ésquilo, Sófocles, Camões, Machado, Dickens, Poe, Goethe, Musil, Mann e tantos outros como referências. A democracia cultural deveria ser o legado universal e as referências universais, não os estreitos limites da vida miserável e do elogio da pobreza. 
Conhecer o entorno, as comunidades, expressões particulares, tudo isto é absolutamente relevante. Mas como isto se conecta com o mundo? Como isso dialoga com a cultura ilustrada universalista? Esta é a chave, e formuladores de políticas culturais e educacionais deveriam pensar nelas. 
Mas isso supõe que esses formuladores também detenham esta visão e a capacidade de interpretação proporcionada por nossa herança universal. Pode ser uma cruzada difícil ...

P.S.: Como nota adicional e expressão do "eu" sublime, vivemos em um país onde uma diminuta parte da elite (?) elege colunista de jornal como membro de academia de letras, mesmo que escreva  textos onde dois terços são menções a terceiros, sem nenhuma originalidade ou o mais remoto valor literário. Pobre fantasma de Machado, em tão má companhia ... 

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