domingo, 12 de agosto de 2012

Sobre lembrança e esquecimento: o hino soviético, Lênin e Londres 2012

Para Vladimir Lenin,  mesmo desconfiando que ele odiaria, 

Para amigos dos anos 80 e para alguns mais novos.


Mas quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fieis, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo como almas, lembrando, aguardando, esperando sobre as ruinas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação
Marcel Proust - No Caminho de Swan (p.51, Editora Globo)


Hoje pela manhã foi a final olímpica de vôlei entre Rússia e Brasil, com uma memorável vitória russa por 3x2 sobre o forte time brasileiro. Terminado o jogo, na premiação, aumentei o volume da TV e ouvi algo que tinha esquecido que ainda existia: o hino da Rússia permanece sendo o da antiga União Soviética, que por sua vez é o eco da antiga Internacional. Não sei por que, depois de tantos anos de mudança e reconstrução, de muro caído, parlamentos bombardeados, estátuas derrubadas, de presidente trôpego e ex agente da KGB, parece que somente dois elementos sobraram: a múmia na Praça Vermelha e, para o canto esquecido da minha memória, o hino. 
Na Olimpíada de Barcelona (1992) ocorreu a primeira competição sem a velha URSS. Na ocasião um ginasta de origem bielorussa competiu pela ficção territorial chamada Comunidade de Estados Independentes: seu nome é Vitaly Scherbo. Em uma de suas tétricas coberturas televisivas, a Rede Globo escalou o "grande" poeta contemporâneo Pedro Bial para uma "crônica", onde este senhor declamava tendo por imagem de fundo  a cena com Scherbo nas argolas na posição de Cristo e depois chorando ao ouvir o hino, o mesmo do qual comecei  falando. Na interpretação do "notável" jornalista, com a imagem congelada na posição de Cristo, ele definia: o atleta estava prestando homenagem, com seu choro, a um deus morto. Qual? Claro: era o comunismo.
Hoje me recordei desta cena depois de sentir uma pontada de emoção ao ouvir o hino. Antes que algum desavisado critique, não tenho saudades da velha Rússia Soviética, do modus operandi stalinista, dos pogrons, campos ou algo parecido. É que às vezes os entulhos da história permanecem. Entre a década de 80 e 90 houve uma larga oferta de varredura para o esquecimento do que foi o movimento socialista, onde ele atuou, quem ele ajudou a liberar, que sonhos cultivou. Muitos socialistas e comunistas estiveram à frente de movimentos de libertação nacional no antigo "terceiro mundo", na África e na América de língua espanhola. Em experiências frustradas no Chile de Allende, no fim da ditadura de Baby Doc Duvalier ou em Cuba. Há um poema de Neruda apontando que os comunistas, que mais combateram tantas ditaduras, foram jogados depois no fundo do palco. Os herdeiros da tradição socialista, mas não comunista, afiançaram a democracia europeia depois da guerra (na Alemanha, França, Itália) e foi muito importante sua ação em Portugal (1974) quando os cravos substituíram as baionetas em uma das mais belas transições que se tem notícia. Estes últimos não eram leninistas, o líder soviético com sua retórica inflamada os denominaria antes de "chauvinistas".  Até isso tem história - a grande querela de Lênin com Kautsky e o SPD.
A Rússia bolchevique pretendia ser uma espécie de refúgio para a utopia comunista. Mas ela fracassou redondamente, seja pelo insucesso econômico e a incapacidade em produzir sinalizadores claros de preços, pela institucionalização precária das organizações, pelo estado que reunia em si todos os poderes e pela incapacidade em compreender mutações que foram do estado de bem-estar aos ventos liberais dos anos 80. Lênin escreveu ao fim de "O Estado e a Revolução" que era muito mais prazeiroso fazer a revolução que escrever sobre ela. A experiência histórica do comunismo soviético mostrou que era muito mais terrível dirigir o atraso que escrever sobre ele.
Entretanto, a defesa do esquecimento é um programa terrível. Afinal, como esquecer a heroica batalha de Stalingrado e o papel que o exercito vermelho desempenhou a despeito de quem o liderava? Os sacrifícios do país invadido à época ainda da revolução pelas potências ocidentais e os esforços de industrialização? Quantos conhecem a epopeia de Trotsky no exílio, sua perseguição implacável pelo regime stalinista, a perseguição de um brilhante intelectual do "desenvolvimento desigual e combinado", base da internacionalização e depois das justificativas para revoluções fora do centro capitalista?
Talvez a minha geração, que estava na Universidade nos anos 80, tenha sido a última que conhecia a formidável biografia de Trotsky por Isaac Deutscher, o "programa de transição" de Trotsky, discutia Lênin e Marx/Engels em suas obras completas publicadas pela Alfa-Ômega, citava as " Teses de Abril", juntava dos sebos textos do Edtorial Escorpião de Portugal ou editoras pequenas gerando edições despedaçadas dos "Manuscritos de 44", com fragmentos sobre a alienação do trabalho. Alguns com mais sorte escapavam do dogmatismo e viam Gramsci como uma luz diferente no túnel e tentavam, sinceramente, transformar o excepcional intelectual multifacetado que foi Walter Benjamin em marxista. Aqui lembro tudo de forma esparsa. Houve uma geração antes, na década de 1970 no Brasil, para quem o grande nome foi Lukács e a crítica da cultura era revelada por Adorno, Horkheimer ou  Marcuse. A esquerda dos 80, da "abertura política" brasileira, compartilharam o desejo de entender os ventos de mudança que sopravam no país com leituras clássicas e marxistas um tanto "abertos", caso do americano Marshall Berman e "tudo que é sólido desmancha no ar", livro surpreendente muito lido aqui e que pouco interesse despertou em quase toda parte. Os anos de 1990 marcaram o entusiasmo por autores como Habermas, os "marxistas analíticos" de diferentes matizes (pois Roemer e Elster são diferentes de Olie Wright e Przeworski) e os debates sobre a vitalidade do marxismo ou sua defenestração ao reino da "teoria do conhecimento". O final dos 80 e início dos 90 são a era da "crise de paradigmas nas ciência sociais", dos textos de Alexander e da divulgação forte de Thomas Kuhn. 
O fracasso do comunismo histórico é o fracasso de Lenin? Do leninismo conforme ele se desdobrou pelo mundo sim, do stalinismo com absoluta certeza. Com eles também se foi Trotsky. Com perdão do trocadilho (se pensarmos em " Que Fazer?"), o que ficou? A utopia do comunismo deve a Lenin tanto o sucesso como o fracasso. O sucesso da revolução de 25 de outubro, uma revolução acompanhado pelas multidões com a promessa generosa de "as terras para os camponeses, as fábricas para os operários, paz e prosperidade para os povos". E de fracasso stalinista pelos campos de prisioneiros, pelos pogrons, pela ineficácia econômica. Não foi o "início do fim das classes", como escreveu Marx em seu programa pós revolucionário, mas a construção de uma distopia. Entretanto, não é possível diminuir a presença histórica de Lenin.
Foi muito triste identificar um legado distópico em um programa de esperança. Grande parte daqueles que defendem hoje a herança de Lenin apresentam uma irracionalidade da política como fim em si mesma, reinterpretando a mensagem de "Que Fazer" em um partido ou organização com uma visão instrumental da democracia e deslocada da realidade, convertendo a revolução no mesmo fenômeno da miragem do deserto: quanto mais eles se aproximam do ponto, mais ela se desfaz. Muito poucos, opacos, tornaram-se irrelevantes no cenário político de todas as nações, democráticas ou não, limitando-se a gritar a plenos pulmões e tornando-se roufenhos com o passar do tempo, como se o Palácio do Planalto sequer tivesse a grandeza do Palácio de Inverno, exagerando a ironia.
O pior é que este comportamento não serve no combate ao esquecimento. O mundo contemporâneo cultiva uma amnésia societal que atinge a geração atual. Tudo se dá, após a hecatombe liberal entre os anos 80 e o início de 2000, como uma invenção atual: profissionais e jovens comportando-se como se o mundo estivesse começando com suas vidas. O ultraindividualismo, o grande legado de Thatcher, imiscuiu-se para a esquerda, inclusive naquilo que muitos creem ser projetos coletivos. Isto vai da "minha carreira" ao "meu sucesso", de minha (e de mais ninguém) trajetória e da história de cada um. Os links com o mundo compartilhado estão mudando de local - para a internet e solidariedades "locais" - desfazendo-se dos laços de classe e introduzindo apenas os laços do extemporâneo - de movimentos anti aumento de passagem de ônibus até muitos occupy mundo afora. Até greves tornaram-se expressões do "eu" totalitário, da "minha vida", como se o jogo tivesse um round e não múltiplas rodadas. Hoje há uma geração que tem pressa, que perde a experiência em nome apenas de si. 
Talvez seja preciso recuperar Lenin, mas não para uma caricatura dele mesmo. Contra o ultraindividualismo, o "espontaneísmo" das praças e a "doença infantil do esquerdismo", Lênin faz falta. Em outro contexto, o insuspeito Norberto Bobbio escreveu um texto no livro "Depois da Queda" (Paz e terra, 1992, p. 20) algo que aponta para uma questão central:
A democracia, devemos admitir, superou o desafio do comunismo histórico. Mas, de que meios e ideais dispõe para enfrentar os mesmo problemas que deram origem ao desafio comunista? ... Como disse o poeta: "Agora que já não temos bárbaros, que será de nós sem bárbaros?"  
 Em algum tempo pode ser que ninguém tenha nenhum rasgo de emoção ao ouvir o hino da velha União Soviética e seus ecos da Internacional. Ou não saiba exatamente o que foi aquilo e que história teve. Será um dia triste.

P.S.: A Olimpíada de Londres terminou e, na festa de encerramento, lá estava o "fantasma" de Freddie Mercury no telão regendo a multidão, bem como os vastos cabelos brancos de Brian May (como o tempo passou desde o Rock In Rio 85 que vi) dedilhando uma das melhores guitarras de todos os tempos. Lenin detestaria, mas como ainda é bom ouvir o som pop-rock do "Queen". Sorry, herdeiros do leninismo de caserna, melhorem o humor.

2 comentários:

  1. Muito bom!!!
    É particularmente excelente o retrospecto do que foram as etapas recentes do pensamento marxista, rumo ao status de "página virada". Chega a ser comovente ler o trecho ao som do cоветский гимн. De fato há ainda muito o que se refletir: sobre as tarefas não completadas propostas pelo "Que Fazer?" ou sobre o comportamento de alguns companheiros que dirigem a greve dos federais, que de tão a esquerda, acabam por dar a mão à direita. Esses últimos, sem dúvidas, precisavam ler o "Doença Infantil do Comunismo". No mais, fica uma pontada de inveja de não ter vivido a academia da época em que se podia fazer uma referência a Trotsky, sem ter que vir acompanhada de tantas justificativas quantas forem necessárias para desautorizá-lo. Em nossos dias, até Elster, um bastião do marxismo arrependido, soa panfletário para muitos colegas.
    Uma coisa mesmo os antimarxistas não podem negar, sem o velho, há menos “paixão” nas dependências universitárias.

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  2. Oleg. Obrigado por seus comentários. De verdade mesmo,quis exercitar esta dimensão perdida dos ano 80, que foi se esvaindo até ser substituída pelo ultraindividualismo na própria esquerda. Como você bem observou, o comportamento de certa esquerda opera no sentido daquilo que o thatcherismo fez na mesma década de 80 - emparedou o movimento sindical pela progressiva perda de apoio dos sindicatos na própria sociedade inglesa, que, em grande parte, comprou o argumento de Thatcher de sua culpa nos fracassos da Inglaterra.
    Mas, cá entre nós. Achar Elster panfletário já é um pouco demais!
    Espero continuar contando ocm seu acompanhamento.
    Um abraço

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