segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Sobre o processo eleitoral de 2014 - um resumo executivo e o sumário de politicas futuras

     No dia 25 de outubro eu completei 50 anos. Sou parte da geração que começou seu ciclo de vida em 1964, ano terribilis de vergonha e crime, onde cresci e, ao ingressar no ensino médio tomei consciência de um desejo de mudar que nunca mais me deixou. Cursei a universidade pública ao fim da ditadura, uma mão apodrecida pela quebra da pouca legitimidade que tenha construído e por uma crise econômica sem fim. Ali comecei a militar, filiado ao PT em 1985, onde fiquei até 1993 formalmente. Nunca deixei integralmente de me aproximar de suas bandeiras e de seu programa. Sofri na noite fria de abril de 1985 quando a emenda Dante de Oliveira foi rejeitada, onde a mão podre da ditadura resolver oferecer seu canto de cisne com o general Newton Cruz e a camarilha do Planalto. Como quase todo o Brasil foi emocionante assistir a eleição de 1989, mesmo na doída derrota, e presenciar, ao vivo , o grande comício da Candelária, com Lula e Brizola contra o Aécio de então, um rapaz chamado Fernando Collor. Daí para a frente assistimos a ascensão da década terrível de 1990, com suas reformas anti-populares, a inserção passiva do Brasil na globalização sob comando do norte e da China, as privatizações, a compra da reeleição, a pasta rosa, o SIVAN, o rentismo desenfreado (alguém imagina uma taxa de juros de 45%?) e, sim, o controle da inflação. Essa foi a vitória do governo Cardoso e a causa última das suas duas vitórias presidenciais, as quais de outra forma não conseguiria. O fim do ciclo de hiperinflação foi um poderoso ganho político que se manifesta até hoje, uma vitória, sim, da população, inegável. Mas o conjunto da obra é por demais sofrível"desemprego alto, crescimento baixo, patrimônio público vendido e recursos obtidos para a redução da dívida pública (sem obter sucesso diante dos formidáveis juros), a renegociação da dívida dos estados com indexador problemático, enfraquecimento dos bancos públicos, desmonte da infraestrutura, ausência de políticas setoriais, restrições fiscais, política externa ligada aos interesses do centro do capitalismo. O fracasso do segundo mandato de Fernando Henrique abriu a janela de  oportunidade para o PT. 
     E Lula venceu, para nossa imensa alegria. Passei quase a noite em claro, tinha viajado quase 600 km para votar no primeiro e no segundo turno, de Campinas a Minas. Pensei: hora, votei todas as vezes, agora não vou participar e ajudar com meu voto para que todos vençam? Vim, votei e ajudei a vencer. Os dois primeiros anos foram terríveis: a dupla Fazenda/BC, Palocci as frente, parecia desmontar as bandeiras do partido e aceitar as regras herdadas; foram anos com pouco resultado. Confesso a desilusão. Em seguida o episódio que terminaria na ação penal 470, o esquema que manchou a história do partido em nome da governabilidade e, mesmo que todos os partidos a pratiquem de olho no caixa 2, não se justifica. Aqui houve uma virada: o PT passou a conviver com essa mancha, mas o governo mudou. Programs se expandiram, o Bolsa-Família começou a ganhar corpo, o funcionalismo começou a ser recomposto, obras de investimento público aumentaram, o crédito se ampliou, os bancos públicos ampliaram seu papel, políticas setoriais, como a industrial, retornou, a desigualdade cedeu (ainda falta muito, mas cedeu), o emprego aumentou - e muito - com carteira, assim como políticas como a valorização do salário mínimo e da previdência tiveram efeito positivo. E Lula triunfou de novo. E conseguiu um mandato ainda mais forte, contrariando o senso comum. Em meio a tudo isso, a pior crise no capitalismo desde 29, aquela que os assessores econômicos de Aécio, hoje, dizem que foi localizada. e "já passou". O enfrentamento neo-keynesiano da crise nos livrou do pior, e segurou nossos indicadores de forma muito menos artificial que o real na reeleição de Fernando Henrique. desse triunfo e dos nossos indicadores gerais garantiu-se o futuro imediato. O significado desse mandato de Lula foi tão forte que ajudou a eleger uma ministra que parecia ter poucas chances, não fosse a força do presidente e a compreensão sobre a continuidade de seu governo. E Dilma venceu e continuou.
     Neste período de 12 anos houve problemas. O debate em torno da corrupção, malgrado o governo incentivar mais operacões policiais, processar mais gente, recuperar mais dinheiro para o erário, incrementar a AGU e seus controles, aumentou e a imprensa, que preocupou-se pouco em investigar e mais em repercutir denúncias, fez o seu papel para a classe média. A oposição adotou a guerrilha do dia a dia, multiplicada pela grande imprensa. A ação penal 470 foi julgada no meio do mandato de Dilma, e durante o processo eleitoral da campanha para as prefeituras. Ali, seu efeito foi muito pouco, até Fernando Haddad ganhou a prefeitura de SP, mas seu efeito de longo prazo estava dado.  Desta eleição o PSB surgiu forte e o PSDB não tanto assim. Em 2013, sem eleição as ruas explodiram em junho: contra partidos, organizações, insatisfeitas com o sistema político e a corrupção, foi protagonizada uma colorida reação dos setores médios, muitos emergentes, e que estavam diante do "transbordamento"de suas demandas. E agora? As reações tímidas da política de Brasília não os convenceram, a mídia passou a tratar dos vândalos, a criminalização das ruas não veio da esquerda, mas das forças de sempre da reação: a direita e seu par de mídia. Vibraram com ataques ao governo, não entediam que era também contra eles. Quando entenderam, o rótulo: vândalos. Suas reivindicações  espalharam-se pela vida pública, algumas poucas atendidas, outras dificuldadas pela própria explosão do movimento. A nova política, como alguns gostam de chamar, não buscava interlocutores nas instituições. E  o movimento recrudesceu
     Dilma chegou ao momento de sua reeleição enfraquecida por anos de denúncias e ataques acirrados e ácidos da imprensa e dos rentistas, dos economistas cuja visão de mundo é uma planilha, das forças conservadoras que desejavam a volta dos anos 90 e de desafios novos como o ex-aliado Eduardo Campos que desejou alçar voo próprio. Junto a isso, Marina Silva, que com notável incompetência não conseguiu dirigir a criação de um partido, adere ao PSB e torna-se vice de Campos. As forças da regresso já haviam escolhido seu candidato: o limítrofe, fraco, sem liderança e neto de Tancredo Neves (sua melhor credencial), para espantar do poder a fonte do mal, da corrupção e da falta de crescimento representado pelo PT. Seu mote: mudança. Para onde? Os anos 90. Seu ministro? Arminio Fraga- dos anos 90 e especulador internacional. Sua campanha: pela família, a propriedade e contra a corrupção, com discursos paralelos anti-Cuba, anti-venezuela, parecendo retornar à década de 60 com ares de Carlos Lacerda, a Marcha da Família. A candidatura da direita e da mídia foi atropelada por Marina Silva, que trazia um recall do passado e ares de novidade. Em três semanas desmoronou diante do PT e do PSDB que, sem dó, apresentaram uma candidata fraca, titubeante, sem capacidade para decidir, confusa em economia e na agenda social e sem sua origem ideológica - o ambientalismo. Misturado a um messianismo preocupante e com apoios conservadores ainda mais estranhos, sucumbiu à politica ao ponto de não exercer influência alguma no segundo turno.
     Que fazem as forças da reação? Voltam-se, de novo, para Aécio. E o país assiste ao seu crescimento, ao fim do primeiro turno, terminado em segundo. Na virada para o segundo turno, conforme crível, fez a "tesoura", assumindo a ponta. Não, não foi suficiente. Ele não abriu. Neste momento, a política voltou. Sem deslanchar, Dilma colocou em ação uma formidável máquina de marketing e debate político que desnudou o governo pífio de Aécio em Minas, sua incapacidade em mostrar algo novo, sua inconsistência, seu discurso enviesado sobre corrupção (sempre são os outros), sua censura à imprensa de Minas e até sua agressividade com mulheres e sua intimidade com aeroportos inúteis. Aquilo e preciso lembrar os números. Eles parecem ter passado o segundo turno quase todo em empate técnico, com o crescimento decisivo de Dilma entre a segunda e terceira semana de campanha. Aécio se recuperou um pouco ao final. 
     A vitória de Dilma por 3,3% - eu mesmo acreditei em algo entre 4% e 5% - traduz uma divisão forte no país. Esta divisão reflete a adesão do eleitorado a projetos distintos, mas há também uma artificilaidade. A grosseria da campanha, me perdoem, mas muito mais da classe média ressentida (a antiga e até parte da "nova"), da mídia insufladora, de setores corporativos insatisfeitos (vários médicos, p.ex.), de parte do capital produtivo e de todo o rentismo - fora o apoio "indispensável de Roger, Lobão, Danilo Gentil, Regina Duarte Alexandre frota, Luciano Huck, Coronel Telhada e o Ronaldo (que de fenômeno nada tem) - descolou-se da irritação privada para marchas de 500 a 1000 pessoas ou para a internet. A reação da campanha do PT foi a rede ser usada para desconstrução de boatos, de ataques diuturnos da imprensa, contra pesquisas falsas e, em alguns casos, também com agressividade, ainda que muito menor. A internet teve um grande papel, pela segunda vez em eleições presidenciais, mas foi a rua o grande show. A esquerda voltou, com grande passeatas, bandeiras, comícios gigantes, politização do debate. A ela estavam unidos os setores mais sofridos do Brasil, a ascensão social que permanece, as pessoas que melhoraram - e vêem isso para seus filhos - e melhoram com mais chances na vida, pela educação e a formação. A vitória do norte-nordeste é isso, somente isso - e isso é muito. O número final foi de 70% a 30% - dá o que pensar; no norte foi próximo de 65%. E o sul-sudeste? Dilma diminuiu a distância no sudeste porque venceu em Minas, o estado do grade paladino da moralidade - pela segunda vez. Aqui ele foi salvo de um vexame pela capital e a região central, o que diz muito sobre como o estado foi dirigido. Ele perdeu no sempre interessante Rio de Janeiro e teve uma grande vitória em São Paulo. Isso também diz muito. O tamanho do eleitorado de SP teve papel muito forte em sua votação e hoje é um estado espumando de ódio. No sul, Dilma perdeu por pouco no Rio Grande e por mais em Paraná e Santa Catarina, os dois estados mais conservadores do país ao lado de SP. O PT sempre teve dificuldades em PR e SC. Perdeu também no agro-negócio do centro-oeste. Aqui é curioso: O PT nunca enfrentou  o agronegócio, mas perdeu assim mesmo - e como sempre. Esta eleição, por mais que a mídia  tente marcá-la como ascensão da reação, não foi tão diferente. Aécio cresceu perto de 2% a mais que Serra em 2010, venceu onde Serra venceu antes e as bandeiras não foram tão diferentes. O sentimento no país não é tão diferente, exceto por algo muito importante: mais ódio, mais intolerância, mais medo dos mais desfavorecidos, mais medo da perda de privilégios. Há também um sentimento mais forte anti-corrupção. Quase toda a campanha de Aécio no segundo turno foi isso, mas não é somente isso. Esta é uma agenda para Dilma atacar rápido, e eliminar seus críticos com medidas claras.
     Finalmente, a imprensa. Desde que Lula assumiu há um implacável cerco das famílias que comandam esse setor no Brasil. As redações tornaram-se monotemáticas, tomam a versão pelo fato, não investigam nada, patrocinam vazamentos seletivos de inquéritos, distorcem fatos e, somente muito raramente comportam-se de forma equilibrada. De todos, como sempre, as organizações globo e a abril são os chefes da quadrilha. A revista veja é um esgoto, mas, ao fim da campanha, ela ultrapassou todos os limites, buscando alterar a vontade do eleitor com depoimentos sem provas e exatamente menos de três parágrafos. Pois o divulgado foi uma capa, articulada com a campanha do PSDB e com outros meios "jornalísticos". Condenada a não dar publicidade a si mesma, desobedeceu e, agora de forma decisiva, o Tribunal ameaçou multá-la em R$500.000,00 a hora. Aí recuou. Se corrupção merece interesse, a cidadania não pode mais conviver com meios de comunicação que controlam impérios e capazes de manipular informações e sem conviver com um adequado direito de resposta. nada de controle de meios, de controle de conteúdo, trata-se de regulamentação e regulação eficientes.
     No momento em que escrevo, Dilma está reeleita e o PT vai para seu quarto ciclo. O governo errou quando não enfrentou a mídia golpista no passado, quando flertou com setores rentistas e quando não aprofundou a política social efetivamente. Quem sou eu para propor uma agenda, mas como cidadão arrisco a fazê-lo. Como cidadão e eleitor de centro-esquerda. Porque, Dilma, fomos nós que seguramos quando a coisa ferveu; fomos nós que fomos às ruas, à internet, a debates e derrotamos a reação, cada um em seu front. Algumas sugestòes para a agenda precisam ser feitas e debatidas pelas forças que venceram. Tentemos resumí-las, porque isso merece uma postagem exclusiva:

* é hora de virar para políticas de inclusão mais ousadas. Abandonar qualquer ilusão de "rede de proteção social", o que determina políticas sociais compensatórias e para longe da universalização de serviços. Perseguir a inclusão e buscar direitos de cidadania antes que mera focalização;
* desenvolver mecanismos de democratização da mídia pela regulamentação do dispositivo constitucional sobre a propriedade dos meios de comunicação e com relação a uma legislação por direito de resposta. Adicionalmente é preciso repensar as verbas publicitárias para veículos que perdem audiência e comportam-ser como partido;
uma política ativa de emprego, aproximando políticas sociais e emprego de qualidade com formação adequada; 
* valorização dos mecanismos de ação econômica de fortalecimento do setor público e dos bancos públicos como agentes do desenvolvimento; 
* tratamento do setor produtivo com políticas seletivas em um conjunto ordenado de medidas não erráticas e negociadas por câmaras setoriais, dentro de uma poltica de valorização da indústria
*  incentivo aos mecanismos de participação e aos arranjos de concertação com a sociedade civil;
* o desenvolvimento de uma agenda ambiental que permita avanços no diálogo crescimento/sustentabilidade, acoplando este debate ao nível de emprego e de qualidade de vida com projetos locais de desenvolvimento;
* medidas que calem a reação com relação a corrupção, reforçando controles, nomeações técnica e acordos com absoluta investigação da AGU sobre aliados. Isso à luz do dia, onde setores fisiológicos são constrangidos. 
* o esforço em volta da reforma política em parceria com a sociedade e com  o Congresso. A ideia do plebiscito sobre o texto final é uma boa iniciativa.
     
    É apenas uma sugestão de pauta inicial. A luta começa agora, de novo. Jogamos a reação para seu significado de fundo do palco. Mas eles espreitam de volta.Para quem acredita em outro Brasil, democrático e inclusivo, a luta não pára. Daqui a quatro ans estaremos na rua novamente. Eu prefiro que seja antes, mobilizando pelas reformas de esquerda. No momento em que a Europa queda-se envergonhada diante da crise que os liberais criaram e estão mantendo, a centro-esquerda europeia banqueteando-se com medidas de direita, cá estamos nós, na vanguarda da América Latina, dizendo não. Eles, o partido da reação, dizem que somos atrasados, que o Pacífico é o futuro, que somos dinossauros. Não senhores, nós vivemos aqui e agora, nosso compromisso é com outro mundo e outra globalização. E vocês, da reação lacerdista, tem um caminho: Miami está distante 9 horas de vôo; deixem o país para quem dele não abre mão.
     Grande vitória, grandes esperanças, a la Dickens. Agora é avançar.

3 comentários:

  1. Excelente análise a que não se tem acesso pelos meios tradicionais de comunicação. Para um professor, sempre há tempo para compartilhar o conhecimento! Valeu, Condé!

    ResponderExcluir
  2. Sugestão: ao invés de se dedicar a amarguras, sofrimentos, maledicências, usem o tempo para a leitura! Naturalmente que não para aquelas do (des) serviço da imprensa marrom!

    ResponderExcluir
  3. Obrigado MCarmenm, por sua leitura. Um abraço.

    ResponderExcluir